Metamorfose em Agosto – poema de Nuno Júdice

METAMORFOSE EM AGOSTO

O verão solta os cabelos como a mulher
que se ergueu do leito e avança para o espelho,
com as mãos da manhã a viajarem pela sua pele. O que ela vê é o reflexo dos sonhos que as suas pálpebras fecharam para que o dia se não apoderasse de imagens que ela própria já esqueceu; e
quando despe a túnica da noite, olha
para os seios como se neles corresse o leite
que alimenta o desejo, e entrelaça nos seus
cumes os gestos trânsfugas do amor.

O verão, que subiu às açoteias do litoral
como o grito dos amantes que incendiou
a tarde e atravessou a terra com um calafrio
de nortada, transformou-se no carreiro
de formigas que se perderam da sua cova. Sigo-as
num caos de vagabundagem, como se elas me levassem ao encontro de uma recordação de madrugadas
de ócio, ouvindo a voz que ficou da insónia
emergir de uma dobra de lençóis, com
as sílabas exaustas de um imenso abraço.

E saúdo o verão que as trepadeiras possuíram
nos quintais anónimos de ruínas imprecisas, esse
que fez cair sobre nós o seu relâmpago de seda,
um sumo de palavras húmidas e a última ressonância de uma sombra de corpos.

A Convergência dos Ventos, Nuno Júdice, 2015, D. Quixote

nunojudice