No terceiro andar do lote 19 um homem cospe nos livros de filosofia da sua biblioteca pessoal. Após cuspir, dá omoplatas às lombadas e tende para a cozinha. O homem concentra-se no essencial. Tem fome. No lava-loiça lava um quilo de batatas. Diz, Platão filosofou porque tinha a barriga cheia e criados que descascavam batatas. Pega na faca. O tacho com água. As batatas entram no tacho. A cozinha tem um fogão equipado com dois bicos a gás e uma placa eléctrica. E a questão vital com que este homem se defronta a cada dia é: ao usar o fogão para cozer batatas, gasto luz ou gás? Onde conseguirei poupar? O homem está desempregado. Cuspiu nos livros de filosofia. Nem a longitude do pensar, nem a lentidão, fazem parte das prioridades do mundo ultra moderno. Já ninguém coloca questões como: será a vida apenas um constante fazer cemitérios? Colocam-se outras, essenciais: gás ou luz?
Sandro William Junqueira