HISTORINHA – A CEGONHA E OS SEUS VIZINHOS |

No cimo da torre da capela, um vulto destaca-se no azul do céu.
– Está hoje muito calada, senhora Cegonha! – Nota, em jeito de puxar conversa, o relógio que mora sob o ninho da ave pernalta.
– Faço o contrário do vizinho, que mal abre a boca, não há ninguém que não ouça aquilo que diz!
– O que digo?! Ora essa! Digo as horas! – Abespinha-se o relógio. – E se não falasse tão alto, havia de ser bonito…
– Pois eu, sempre ouvi dizer que falar alto é uma coisa muito feia. – Comenta a cegonha para o irritar.
– Mas não quando se trata de um relógio. E muito menos de um relógio da torre de um campanário! – Contradiz o relógio, a adiantar-se, tiquetaque, com o nervosismo.
O sino, vizinho de ambos, atalha, apaziguador:
– Então, então, meus amigos, temos agora vizinhos quezilentos?
– Eu apenas disse que falar alto não é bonito. – Defende-se a cegonha.
– E eu respondi que, muito embora tenha o costume de falar alto, ainda há por aí quem diga que não me ouve. – Explica o relógio num tiquetaque mais acelerado.
O sino resolve dar a sua opinião:
– Como é do vosso conhecimento, não gosto de discussões. Mas sou forçado a reconhecer, senhora Cegonha, que não foi muito simpática aqui para o nosso vizinho relógio…
– E sabe por quê, amigo Sino? Sabe por quê? – Interrompe a ave migratória. – Porque estou, praticamente, em jejum. É verdade. Em jejum! – Repete, a justificar-se. – E olhe que não é à falta de manter os olhos bem abertos desde que rompeu o dia. Mas cobras e ratos, não há quem os veja… – Lamuria ela.
– E por causa da sua pouca sorte, atira o azedume para cima de mim! – Protesta o relógio, ainda agastado.
– Tem razão. Desculpe. – Pede a cegonha, à beira do ninho, pescoço curvado, o bico quase a tocar o ponteiro dos minutos.
O relógio abranda o tiquetaque.
– O que lá vai, lá vai. – Responde. – Há tanto tempo que somos amigos…
Feitas de um cheirinho a verdete, ouvem-se as palavras do sino:
– Era o que faltava, ficarem zangados. Demais, agora, que chegou o Outono e a senhora Cegonha está de abalada para o Norte de África.
E logo, a quebrar o silêncio que se intrometeu:
– Domingo, no final da missa, tenho dois baptizados. Vai ser um tão-badalão de se lhe tirar o chapéu! – Informa, num entusiasmo.
– Pois eu, vou dar outra volta. Pode ser que desta vez tenha mais sorte… – Despede-se a cegonha, em busca do almoço.
E o relógio da torre da capela, tiquetaque, acrescenta meia hora ao dia que arrefece.

Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que o Outono me Contou»
Ed. Publicações Europa-América