RAIMUNDO | CONTO III | COLECTIVO NAU | João Rebocho Pais

Dizem que Raimundo conhecia muito mundo e isso era verdade incontestada, mistério partilhado, coisa de todos e de cada um. Reza ainda que, embora difícil seja de acreditar que alguma raiz houvesse criado, que era de Cuba a pessoa.

No estabelecimento do senhor Armando e dona Lurdes, sua dedicada parceira de casa, cama e negócio, se havia personagem a merecer mesa reservada e fotografia na parede, pois Raimundo era uma delas, senão talvez a única. Ali entravam e saíam engenheiros, doutores, mecânicos,  intelectuais e outros tantos, ocupados, desocupados e indecisos, fazendo da Flor de Águeda uma plataforma giratória de vida e seus infinitos labirintos. Por ali se gastavam momentos preciosos, se despejavam jeropigas e moscatéis desde manhã bem cedo, por ali as agruras da sobrevivência e as euforias de certos dias escoavam em copos de três, em guisados e cozidos de pedir meças, em tardes de quietude também. E Raimundo, esse tal que meio mundo haveria de conhecer segundo a ciência dos passantes e não só, do proprietário do local também, esse Raimundo que é nosso um pouco e porque não?, que somos gente e por tal curiosos que chegue, pois Raimundo era portador de todas as cores, magias, sons, cheiros, sabedorias e outras coisas que tais, provindas do mundo onde ele se fazia mundo. Que o contasse e testemunhasse quem por sorte e artes ganhara um dia a possibilidade de com ele dividir uma taça de branco. Raimundo só bebia branco, servido a jarro. Contava que aprendera com os índios, quais não podia precisar em detalhe, mas jurava que em volta de certas fogueiras as danças dos bravos, as suas pinturas e oferendas divinas careciam do acompanhamento imprescindível de uma bebida secular. Que era branca, que sabia a vinho e que se tragava em malgas, única alteração a que se permitia por ali em virtude de um sentido prático que não ofendia seus anfitriões desnudos e imortais.

 

As manhãs na Flor de Águeda repetiam-se em certeira metodologia. Armando chegava com Lurdes antes ainda do sol aquecer fosse o que fosse, isto no Verão porque  no Inverno a coisa piava mais fino e mais fria, seguia para a praça a fim de barganhar legumes, peixes, carnes e o mais que necessitasse, enquanto no estabelecimento se preparavam fogões, se buscavam banhas e condimentos vários até que pelas oito e pouco chegasse a turma apressada dos copos bebidos a penalte, receita ímpar para vontades de trabalhar. Ali a meio da manhã, já com cheiro a café por companhia ao que saía da pipa, era certo e sabido que o mundo faria sua aparição, nos anos vividos por aquele homem, que não sendo velho não o era novo, que sendo de tantos lugares e viagens era dali mais do que qualquer outro lugar, fosse vasto continente, selva de emaranhados traços ou desertos de impossível calor. A meio da manhã chegava aquele de quem se dizia conhecer muito mundo. Nesse momento, antes de qualquer bebida ou atenção, o que o nosso homem, sim porque é nosso este Raimundo e que do mundo queremos saber como ele, o que ele fazia era sentar-se em sossego e pousar um saco, de onde tirava um livro. Todas as manhãs eram as palavras sua primeira bebida. E depois sim, na hora em que tanto tilintar de talher e arrastar de cadeira eram bulício que não se coadunava com aquele recolhimento, tratava de encomendar o prato do dia, e para ele prato do dia era tudo o que lhe entendesse apetecer, mais a mais porque sabiam Armando e Lurdes que com ele almoçaria Rosa Pontes, a senhora professora do quinto andar, austera figura que a poucos concedia sua intimidade oratória. Almoçaria a distinta e deliciar-se-ia, com batatas e legumes cozidos que lhe impunham o médico e a sensatez de uma dieta cuidada, deliciar-se-ia com a garantida viagem que aquele bom homem lhe garantia em quarenta e cinco minutos de refeição. Já com ele viajara de barco, dividindo o desespero de uma partida para a guerra no ultramar, enjoara no mar alto e no medo que lhe trazia essa empreitada que a tantos encurralara no corredor do triste fim, já se havia deleitado, não sem um pudor evidente, com os bustos de africanas desnudas que haviam preenchido as noites e as mãos de Raimundo, seu companheiro na Flor de Águeda, sua secreta certeza que haveria de lhe ter sido um bom aluno, assim o destino os tivesse encerrado na mesma sala de aula, como afinal lhe fazia por espaços tão inverossímeis como o mundo que conhecia em seus almoços. Em boa verdade a Professora era uma das privilegiadas ouvintes de tanto universo e criação divina mas não a única. Por vezes calhava a vez a um ou outro beberrão de plantão, que a Flor não sobrevivia de refogados apenas e os miolos das tardes e manhãs davam bulício nas visitas ao recanto das pipas de certos e martelados nectares, mas martelados finos, assim impunha a decência do gerente e proprietário.

Salino, um pobre coitado de fraco interesse, estofador de dúbia qualidade e valores ainda mais ténues, escutara ele também uma série de acontecimentos longínquos trazidos pelo Cubense, e não estranhem se não é Cubano que a Raimundo epitetamos, pois é do Alentejo que teremos de falar se nos quisermos reportar à origem do velho viajante,  não à ilha de Fidel, por mais que fosse de esperar que por lá houvesse também traço, rasto e historieta deste desembestado portador de avulsas memórias. Salino, a quem não bastava uma cabeça desprovida de capilares para o desmoralizar pois que os dias e as palavras lhe tropeçavam numa gaguez que lhe retirava a pouca fluidez que poderia ousar desejar num bate boca, era um dos ouvintes preferidos de Raimundo Meio Mundo, pois os trejeitos faciais, mescla de espanto e parvoíce genuina, eram combustível eficiente no desenrolar do relato. A ele presenteara com suas mais arrojadas jornadas, desde a quase cozedura em tacho de canibais, passando pelos lençóis de matrona italiana, que por pouco não lhe haviam valido objecto cortante pelo bucho adentro. Que era verdade, jurava e trejurava, pena que não tivesse trazido o sal do manjar em que era ele o servido no panelão, ou, no caso mais trágico porém feliz, o soutien que mantinha em mira geométrica o mais valente par de mamas naturais em que havia posto a vista em cima. A vista e não só, as mãos também, isto para acabar por ali que senão não haveria vinho que aplacasse o entusiamo, contava ao imbecilóide que aquiescia submisso enquanto coçava discreta e porcamente suas partes mais abaixo.

Houvesse cronista à disposição e certamente muito haveria que contar em torno das tertúlias realistico-fantasistas, umas mais que outras, envolvendo o genuino relato, trazido e empurrado para cima por uvas de boa cepa, cepa media ou de menor fulgor, encorajadas ainda por atónitos ouvintes que se agarravam às peripécias e suas curvas como criança em carrossel.

Entrou para a história certa manhã, em que o preparo do cozido prometido na ementa demorou mais que a conta, levando a que os habituais jarros de branco se contassem por meia dúzia e as lucubrações raimundísticas atingissem níveis nunca antes experimentados. Aos cenários de geografias longínquas e quase impossíveis, juntaram-se fúrias meteorológicas de índole demoníaca, já para não falar de fauna e flora que nunca se vira retratada em compêndios da especialidade. Em todos os lugares e momentos, pois aquilo de que tomávamos conhecimento, quer dizer, não nós directamente, mas através do interlocutor bafejado pela raridade e enormidade da coisa, Anselmo Cereja, do que tomávamos boa fé era da capacidade de Raimundo se tornar merecedor de todas as sortes do mundo, e assim se escapar a ventos e intempéries, a tiros de zagalote, a envenenamentos, trapaças, armadilhas, bandidos e outras maleitas a evitar, não raro sendo que algumas noites acabassem num chorrilho de investidas tesudas em beldades de raro aparecimento. Assim mesmo, dizia e Anselmo observava atento, assim mesmo, aos centos era a canalha e ele, sequer pestanejando, trás e zás pás e no fim … no fim mais uma cabazada de cama e ganhara a Alemanha. Era assim, era sempre assim. A leste de tão encaixada e simétrica aventura, apenas o desaforo da surdez do parceiro ouvinte, Anselmo era mouco, Raimundo desavisado e quem sabe não caíra borda fora uma das mais extraordinárias façanhas desenhadas pelo Cubense e desouvidas pelo conviva desprovido de ouvidos com utilidade que se visse.

Blasfémia, chegou a clamar-se.

Desperdício apenas, deram de barato outros.

Sabendo no entanto os presentes, quiçá também os ausentes, que a vida por ali seguiria continuando.

E outros, muitos outros claro está, cada um com sua táctica de aproximação e consentimento do Velho Sábio, uns à vista outros na pacatez de horas mais mortas, mas todos eles buscando conhecimento e sabor para as suas vidas, escutando acerca de tudo, e nesse tudo cabiam espiões, putas, lutas e coisas brutas, como também entravam noites de poesia, com maravilhosas descrições da dor e do sentir, dos fracos e dos fortes, pois que não havia lugar nem gente onde não coubesse um pouco de Raimundo, disso eram testemunha seus ouvintes, nem um só ousava franzir o sobrolho, perante ondas gigantes, bichos medonhos, dilúvios, guerras sem fim e o mar também.

Quem hoje passar ali à rua onde Armando e Lurdes um dia fizeram seu ganha pão, quem souber procurar nas folhas das árvores e nas pedras da calçada que tanta gente viram entrar ali, poderá aquilatar que em nada mentiu o nosso homem, nosso, repito, porque curiosos continuamos e dele queremos fazer parte.

Quem viajar no tempo, sem as grilhetas do mundo complicado dos homens, abarcará Raimundo, abraçará Raimundo, dele saberá fazer portador do mundo inteiro afinal.

E quem nada disto fizer, pois que emborque dois ou três jarros de branco, como os índios aqui observámos aconselhar, porque Raimundo não mente, que emborque isso e se muna de livros, que abra as páginas e se entregue, emborque e embarque, que faça como Raimundo, o nosso, o homem sem grilhetas nem fantasias, apenas uma certeza, a certeza mor, a mãe de todas as certezas, que meio mundo haverá, a outra metade até também, assim saibamos ser Cubenses na cidade, escolher a mesa e as horas, de quem por companhia queremos.

Dizem que Raimundo conhecia meio mundo.

Dizem que Raimundo lia.

E dizem bem.

João Rebocho Pais