UM ESBOÇO | Rui Sobral

 

 

A tosse tem-lhe assombrado as ternurentas noites em claro. Ela, com afagos, acalma-lhe o peito, o peito frágil do meu pai, do meu tudo, do tudo dela.
Sinto que os dias lhes têm alimentado a ideia de partir para um mundo novo, para a fronteira do adeus e sim – isso faz-me chorar. Ultimamente tenho-me lembrado dos momentos em que ele me segurava na mão, em que ele sorria, aliás, em que ele se ria como um doido. Agora sei que era só para me fazer feliz, para que eu sentisse que teria sempre um chão. O meu pai foi sempre assim – preocupado. Ainda hoje ele me dizia, pela manhã, que estava tudo bem; que iamos todos morrer ao mesmo tempo e só quando todos estivessemos cansados de cá andar. A isso juntava o esboço de um sorriso alegre, aconchegante, porém mentiroso. Eu sei que o meu pai está a morrer. Sei eu e sabe ela. Ela não me diz. Não me mostra. Mas eu sei. Ela bebeu o vinho do meu pai. Faz por me proteger, tenha eu a idade que tiver.
Eu sei que ela tem passado os dias cansada, com a herança das olheiras ainda mais evidenciadas. Com o olhar mais profundo e com os olhos ainda mais fugidios. Ela não dorme há alguns dias. Ela cai no sono de cansaço quando se senta no sofá pisado ou na poltrona grande da sala. Ela costuma dizer, num encolher de ombros simpático, que o meu pai lhe pintou o cabelo de branco. Trabalhos.
Ela foi sempre a mulher mais bonita que conheci. Foi assim que reconheci a beleza em novo. Através do coração do meu pai. O meu pai sempre a amou, de forma mais ou menos “normal”.
Eu sempre quis uma M. para mim.
Não me posso queixar.

Rui Sobral