Vi, não sei bem se vi com os meus olhos de ver, se com as mãos ou com a matéria incandescente do desejo na brevidade das mãos.
Vi ou não vi no átrio a porta entreaberta, o tilintar da loiça, a sirene ao longe, o aroma da alfazema.
Vi, agora posso afirmar, agora que esse roçar de pele, esse repique de sinos me acordou, sim, juro, vi a tua cabeça esquecida do corpo, do átrio, dos ruídos, dos cheiros, da obscenidade da morte, a tua cabeça, a luz da tua cabeça, a voz da tua cabeça, tão igual, tão antiga, a voz, dizia eu, na fresta da porta, no torpor da tarde, pedindo ou dando, é igual, a sílaba única do meu nome, as duas sílabas do sítio, ainda inabalável, redondo, fogo e cinza, janela e porta, e a tua cabeça, ou melhor, a voz da tua bela cabeça dizendo.
Licínia Quitério
“O Livro dos Cansaços”, a publicar em 2015