RITUAIS DE PRESERVAÇÃO

“A ordem é a antesala do terror” – Carlos Fuentes

Em minha mãe, a repressão se vertia em “manias”, como se dizia naquele tempo , em relação ao transtorno obsessivo-compulsivo, que hoje tem um apelido até um tanto pitoresco, o TOC. Diziam só que Fulano ou Sicrana tinham mania de lavar as mãos. Medo de tocar em maçanetas e corrimões. Ou; “…não sai de casa para nada, tem medo de pegar doenças”. O pânico. As síndromes eram mais recorrentes naquele tempo sem psicanálise, terapias, fármacos. As esquisitices dos parentes teimavam por levar muitos deles até à internação, recurso desesperado das famílias, longas, definitivas internações, até.

Tempo, aquele, de parentes irrecuperáveis – pessoas condenadas a manias, terrores vãos, amores impossíveis, famílias estragadas. E a sujeição dos mais equilibrados aos que não o eram .

A idéia de um mundo cheio de perigos, ciladas e doenças, “um mundo a ser evitado”, foi transmitida muito cedo à menina – e durante dois ou três anos, já na adolescência, ela criou também seu mundozinho reservado de fobias, chegou a ter as mãos rachadas, sanguinolentas, de escaras, de tanto lavá-las em água fria no inverno paulistano de então . Teve sorte de livrar-se disso, nem sabia como, mesmo. Escapara ao destino da mãe, que até o fim da vida – aos 90 anos- foi um tormento de viver sempre de sobreaviso, parecia, tensa, se defendendo do contágio do mal, da doença, do mundo, das pessoas, do amor, de qualquer forma de vida real. Nunca a menina vira a mãe mergulhada em uma poltrona, relaxada, mesmo quando fazia tricô sentava sempre na beirinha do

assento, até nas cadeiras comuns, como se não tivesse direito. A mãe, que nunca a beijara.

Era preciso sempre cumprir aqueles rituais de preservação, para não deixar se arrastar pelo nada – é esse o sentido da síndrome. Para não ser castigada, por não ter sido suficientemente limpa, ordenada, obediente, pura : o fantasma do sexo, sempre, do sexo proibido, do sexo visto como pecado, danação.

Cecília Prada