De repente, a mulher sentiu frio. Os olhos vasculharam cada dobra do apartamento. Com certeza, tratava-se de um homem com hábitos estranhos, nunca entrara em uma sala daquelas, mais parecia um templo, a melancolia e a energia conviviam simultaneamente. Uma tapeçaria amarela separava as duas poltronas. Nela, via-se a imagem de duas mulheres em roupas transparentes sentadas à margem de um lago. Separava-as do restante do mundo uma densa floresta. Sobre um dos móveis, um pequeno oratório feito de madeira trazia motivos religiosos e de guerra. Levantou-se para passar os dedos nas elevações da santa barroca. Os pais obrigaram-na a estudar em colégio de freiras. Conhecia a hipocrisia que preenchia os vãos daquele silêncio, das sombras que se avolumavam atrás das portas e desapareciam em orgias, o modo como as meninas fechavam os quartos, algumas usando os móveis como obstáculos. Nunca se esquecera dos olhos esbugalhados da madre, bem na frente de uma imagem muito semelhante a que estava diante dela agora. Acabava de presenciar a superiora assediar uma de suas amigas. Viu muitas colegas serem castigadas pela cegueira dos pais que não acreditavam no que ouviam. No outro ambiente, um tapete vermelho trazia a figura de um lindo pavão. Uma biblioteca ocupava toda a parede oposta à do oratório. Nas estantes, os livros mantinham-se unidos pelo tempo, queriam vir em bloco. Arquitetura, filosofia, literatura, mitologia, debates e ensaios. Ali também encontravam-se os discos: Haendel, Bach, Schumann e muitos outros. Gostava de Bach. A altura do som foi suficiente para preencher o vazio das palavras. Pegou no telefone, diria estar na casa de alguma amiga, ouviria algum sermão, diria não ser mais criança e, impaciente, desligaria o telefone. Não, não deixaria o mundano entrar naquela atmosfera, afastou os dedos do aparelho.