CRIATURAS DE BALTASAR – Folhetim em Catorze Episódios da autoria de Carlos Pessoa Rosa – Nono Episódio

Vacilou na linha que separava o mármore, da pedra vagabunda. Tornava-se cada vez mais difícil assumir a rotina do dia-a-dia. A identidade, registro geral quatro milhões, trezentos e trinta mil, duzentos e vinte e dois, o número é a coisa, a coisa, o número, celas iguais, roupas iguais, mesma hora de se recolher e se divertir, todos são batizados, crismados e se masturbam aos doze, moram em conjuntos residenciais, fumam um mesmo baixo-teor, comem um mesmo diet, trepam com a mesma loira do cinema, na prisão e nas ruas, as mesmas crendices e o mesmo Deus, padres, com humor, fogem de suas igrejas ante à cegueira voluntária dos fiéis, escolas ensinam boas maneiras, jovens saem com o mesmo hábito invisível da mediocridade, enfrentam testes de suficiência, serão doutores, ninguém deixa de violar as leis, há um pacto de permissividade entre os casais, infinitamente, um é cópia do outro – ou seria a cópula do outro? -, até nas pequenas contravenções, nenhuma modernidade se esgota sem a transição, sem uma revolução em Paris. Os pensamentos multiplicavam-se nessas horas de indecisão, vinham em marcha acelerada, nunca davam meia-volta. Acompanhou-o durante todo o trajeto até o escritório. A secretária o aguardava com a pasta contendo os documentos necessários para concluir a transação. O negócio envolvia uma quantia vultuosa, o último que esperava concluir, a comissão permitiria uma independência nunca antes provada.

(continua)