Entro e fecho a porta, giro a chave duas vezes em sentido horário até o ruído da trava, coloco-a no prego, estranha sensação que me toma, déjà vu, única palavra que me recordo em francês, o longo corredor, o piso gasto, a parede tem várias camadas de tinta, sei disso, mas não de quando ou de onde, piso de leve, a não provocar ruído, sigo até o quarto, coloco a mesma roupa de ontem, hoje há luz, Amélia acertará os últimos detalhes, passará a roupa, não há muita, o necessário para um solteirão à porta da morte, arrasto os pés até o banheiro, escovo os dentes com a água deixada no copo pela Amélia, olhando as linhas de meu rosto, preciso cortar o cabelo, rapar a barba e aparar as unhas, fazer todas essas coisas que qualquer sujeito faria para manter a aparência de normalidade, não sei se vou fazer a barba, talvez melhor deixá-la formar-se, ocupar o rosto todo, como os personagens e escritores russos, mas lá tem utilidade, faz muito frio, aqui o melhor é ter todos os pelos do corpo rapados, a negritude ao redor dos olhos não tem como disfarçar, melhor esvaziar a bexiga antes que a incontinência urinária assuma a responsabilidade, o pinto escondido, acompanhando a retração da mente, fico mais tempo até sair o que considero a última gota, na verdade nunca é, vou até a cozinha sem saber o que fazer lá, não comprei nada, mas a sacola de Amélia sobre a mesa, ao lado há pão, manteiga, leite e café solúvel, preparo uma xícara de café com leite, passo manteiga no pão enquanto o café esquenta no micro-ondas, mastigo ouvindo a cantoria de Amélia, quase me esquecia, os remédios… Engulo os três comprimidos de única vez, hoje não vou ao escritório, evito um pouco a compulsão de escrever, sigo na direção da escada que dá no sótão, Amélia passa roupa debaixo da escada, ameaça dizer alguma coisa… Bem, o senhor que sabe. Sabe o quê, Amélia. Nada! Vamos, desembucha! Nunca vi o senhor entrar no sótão, vai se sujar todo, a última vez que pediu para eu limpar foi antes da internação. Me deu vontade… Essas vontades são um perigo para o senhor… Não sei não! Fique tranquila, Amélia, vou procurar algo que me lembre do passado, só isso, os medicamentos me deixam sem memória… Sem memória, mas normal, o senhor devia se livrar das coisas que têm no sótão e que servem apenas para ninho de ratos e baratas. Vamos ver…
Não há chave nem fechadura, apenas uma tranca de madeira na porta. A luz que entra de fora mais das telhas de vidro são suficientes para desnudar os objetos e as teias de aranha. Ao fundo, um baú. Sou atraído por ele sem mesmo saber o motivo. O fecho está enferrujado. Pronto! Não foi difícil abri-lo. Amélia deve ter bisbilhotando, daí a facilidade. O que é isso? Um caderno. Empoeirado e cheirando a mofo. Retiro-o e fecho o baú. Bato com a mão em sua superfície para retirar o excesso de pó: Clara. O nome em letra de normalista, de alguém que estudou para ser professora. Não me lembro de tê-la visto escrevendo. Acho que me servirá, terá alguma utilidade. O restante são tranqueiras pessoais, não me interessam. Quero saber de mim… Aqui talvez alguma coisa. Mesmo tentado esconder, Amélia percebe que levo o caderno comigo. Vai voltar a ler? Pode ser, Amélia. Seu André não vai gostar nadinha disso. É só você não bater nos dentes! De minha boca pode ficar sossegado. Jura!? Amélia vacilou. Não carece.
(continua)