o posso fazê-lo enquanto estiverem no meu pé, fiscalizando meus passos… Depois, retomar à escrita caótica e desejante… Precisam de algum tempo ou alguma desgraça provocada pela natureza para me esquecerem. Enquanto isso, suportar meus dedos trêmulos, a salivação incontrolável diante da velha Remington Rand, a abstinência provocada pela falta da escritura, não sei quantas madrugadas mais aguentarei, o que de mim escritura é atraída pelas desoras, quando se ouve os ossos dos fantasmas estalarem junto aos arrotos estrelares, o riso sardônico da morte, o medo latido dos cães, os gritos histéricos dos bêbados, o serrilhar dos segundos…
A víscera já não ronca, grita! Boteco sujo! Há uma vantagem, sem viva alma. Entro. Um sujeito mal encarado palita os dentes, pano encardido sobre o balcão. Peço pão com manteiga na chapa e café com leite. Limpa as mãos no avental que devia estar branco… No alto, a televisão ligada, não há espaço privado, a violência da cidade verborrágica pela audiência. Enquanto aguarda o calor da chapa, o homem olha as imagens que vão se repetindo, o apresentador sabe que o ritornelo hipnotiza, na calçada vejo as pessoas da cintura para baixo, pernas longas, pernas curtas, passos rápidos, o que constrói alguém com transtorno obsessivo compulsivo eu já sei de cátedra, mas qual será o resultado desse transtorno quando o cérebro do coletivo um abismo, um vazio, uma escuridão, mutilado? Pronto! Diante de mim duas olheiras negras, o prato com o pão e o copo de café com leite. Primeira refeição… Nem me lembrava mais. O pão quente e macio, o café de máquina queimando a ponta da língua. Para quem comeu alimento com vermes cozidos… Mastigo curtindo cada dentada, deixando o pão derreter na boca, sabor que acorda sensações antigas, de épocas em que o pão embebido no café com leite e manteiga não trazia o peso da ejaculação precoce de uma ciência empobrecida pelos interesses corporativistas, da verdade do sabido que vomita trabalho acadêmico para direcionar e manter o vício consumista… Agora é a outra víscera que reclama. Melhor esvaziar a bexiga, aproveitar para deixar de vomitar essas idiotices, Amélia nem imagina como são os banheiros dos manicômios, muito pior que os dos bares e dos postos de gasolina… Quem se importaria com o resto, o repugnante produzido dentro de nós e que contamina a atmosfera com seu odor pútrido? A merda produzida pelo homem é autofágica, assim como os frutos do pensar. Um alívio a bexiga vazia… Grávida, a mulher deve sentir a mesma coisa no limite da expulsão. Dos machos, o cavalo-marinho é o que me consta engravidar, expulsa centenas de clones nas águas do mar. Sinaliza alguma questão que não alcançamos. O ser humano, dos animais, é o que mais dedica tempo aos filhos, mas tempo não é qualidade. Quem se diz dono do conhecimento, não alcança o dito. Nada atinge o singular quando sem as âncoras de um tempo partido, roto, fragmentado. Aproveite como autoajuda. Deixo o dinheiro sobre o balcão e saio. O homem continua anuviado, dentro de uma lebreia criada por ele próprio e que vem da tela, trazida pela luz hipnotizadora.
Fico confuso quanto ao rumo a tomar, foi assim a vida toda…
(continua)