29º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Você ainda está aí? Mamãe sofria com essa mania… Ovos! Agora, pouco importa. Só o fantasma dela presente. E o seu… Vim pegar a garrafa de uísque. Você não leu as cartas. Faz meses que não lê as correspondências. Estão todas sobre a escrivaninha. Acho que não foram avisados… Foi tão rápido. Lembra-se de papai? Não! Você não tem memória. Ele comia a pera. Abria a boca para mordê-la. Não nos demos conta. Ver tudo quedo: a fruta, o braço, a cabeça, o corpo. Não respira… Mamãe diante de alguma sombra que não vemos, sussurrando frases desconexas, você deixa o pão sobre a gema do ovo e corre a socorrê-la. Eu continuo sentado. Descobrimos que morrer é essa pausa no espanto. Deixamos mamãe na agonia do instante e nos fechamos no escritório. De nada adiantou a porta fechada, as sutilezas do passamento transpassam as frestas, os vãos e as paredes. Você colocou-se no canto, rosto virado para a parede e tapou os ouvidos. Não me lembro se chorou. Pouco importava o que eu lhe dissesse. Só saiu dali levado pelas mãos do tio Anastácio. Não quis ir ao velório. Ficamos em casa. Esta mesma casa. De nada adiantou… Tem razão. A imaginação nos colocou em outro velório. Ou não! Talvez estivemos presente, não há ninguém para nos confirmar… Você está ouvindo? Maurerische Trauermuzik. Papai gostava tanto de ouvi-la! Mozart. Cheio de verdades. Como se a ordem do mundo fosse de sua competência. Chegava a casa, enfurnava-se no escritório de onde saía já tarde da noite, dormíamos, acho que nos odiava. Juntos, apenas às refeições e nos eventos da Loja quando nos apresentava com certo ufanismo. Éramos uma família… Melhor voltar, tomar mais umas doses. A euforia é que me encanta. Fique aí com seus ovos! Com os ovos e os testículos. É o que teria dito. O pai ali, sentado, expressão severa, no aguardo de qualquer reação do filho que diante da variedade de um prato de comida pensava na gema e na clara, no ovo frito, o olhar aflito da mãe, como se dissesse Coma, vamos!, a criança em soluços e lágrimas. Marcava, assim, o momento na alma deles, como uma escara, perversidade atroz por infantil, o rosto do pai, o rosto da mãe, a comida, o mastigar nauseento, o prato vazio, o homenzarrão de costas no corredor, a entrar no escritório, fechar a porta, abraçar a mãe, cabeça entre suas pernas, em soluços, o cheiro adocicado, ter as mãos dela acariciando os cabelos, ouvir os conselhos sussurrados, que evitassem irritar o pai, que comesse de tudo, que ovo e pão não alimentam, mas ganhava sua flagrância, suas carícias, suas histórias contadas no entreato do palpitar no peito. Nós carregamos ruídos dentro do corpo. Confabulações com nossos monstros e fantasmas…
 
(continua)