Observo-o enquanto abre o primeiro botão da camisa, percebo a umidade em suas axilas e costas, o quanto está cansado, dedos no teclado, ele pega a vasilha e sai na direção do animal, um gato envelhecido, rabo torto e pelo ralo. Nega minha presença. Nem sempre… Melhor respirar um pouco, fugir do mofo. A escuridão e a fumaça são companheiras do desvario. Faltam-me cigarros. Melhor sair para comprá-los. Os dedos merecem um descanso e aqui ninguém cobra pela nicotina alheia. Preciso terminar o texto, um mês de atraso. Há duas horas lendo o mesmo parágrafo, à procura de alguma ideia: Tinha a impressão de ter reconhecido o estranho. Não era só isto, porém. O pior era que sabia que o mundo o conhecia; conhecia-o até muito bem. Tinha-o visto noutra ocasião… Sim, tinha-o visto em algum lugar e não fazia muito tempo… Até sabia o seu nome completo. Sem dúvida, por preço nenhum deste mundo, diria aquele nome…
Estou saindo! Digo alto. Ninguém responde. Os últimos anos têm sido assim. Preciso trocar a lâmpada do corredor. De onde o som? O mesmo som lastimoso de sempre. Abro a porta de onde imagino vir o gemido. A esperança de reencontrar algo perdido. A luz vazante na janela do quarto da criança que ainda não acordou avança no piso. Ali foi o início. Nem fala, nem frases, apenas sons, cores e odores. Sabores… Saberia a que viera? Traria alguma inscrição secreta ou seria apenas mais um dentre tantos imbecilóides sorumbáticos que não conseguem preencher o vazio nem usufruir da alegria ao redor? Perdi a conta das vezes que me fiz tal pergunta. E a resposta encontrava nos velhos livros empoeirados no porão: O pequeno Oluf é um menino muito estranho: em sua pele branca e vermelha parecem conviver dois meninos de caráter oposto: num dia é bom como um anjo, no outro, mau como um demônio, morde o seio da mãe e arranha com as unhas o rosto da ama…
Teria feito novamente a pergunta não fossem a veladura e o luto que me envolvem. É preciso manter a tensão se o desejo é o novo. Mas a vontade de fumar… Sou mais um na matemática do criador. Isso lá é verdade, vítima do acaso interplanetário. Talvez, menos poético, fruto de uma rapidinha. Estou sempre a dizer asneiras para mim mesmo. Melhor fechar a porta. Enclausurar a luz. Proteger o mofoso do corredor. Piso com cuidado para não arranhar o silêncio, detesto o ranger do assoalho, grito dos antepassados, imagens que pensava perdidas, cada som tem um dono, uma alegria ou tristeza incrustada nele. Não toquem no computador, não quero perder o material! Último grito, último pedido, antes de abrir a porta e fechar os olhos protegendo-me do golpe de luz na retina. Para quem o recado? A mãe respira nos vãos da ausência, sente-se o hálito de sua intimidade e acolhimento. A companheira esgarçou-se na doença. É a elas que me dirijo, não importa onde estejam… E esse sujeito que me nega.
(continua)