O outro de mim. Segue no corredor, na direção do escritório. Ouve-se a Remington Rand. A mesma história escrita a quatro mãos, memória dupla, jogo de espelho, o desejo não realizado e o real não sonhado, da luta restou uma película, um privado exposto ao público. Mas não somos todos assim, uma mentira, resultante matemática do preço de se viver em uma sociedade que põe o individual à mercê do social? Mas por favor! Herrmann com as dobras barrocas, por aqui, não! Mas já está na tela… É do desejo. Plano em que o medo do real não interfere, é uníssona a decisão. Já está na tela, no texto. Você não tira o olho do escritório? É Carol percebendo a pausa diante do prato. É que estou com algumas ideias. Você precisa se cuidar, para tudo há um limite. Não se preocupe… Não digo, apenas olho para seus olhos, bolinhas de vidro. É o que tenho dela: os olhos. Tardes jogando com o outro de mim, os quatro buracos no terreno de casa, feitos com tampa de refrigerante, duas bolinhas, dois jogadores, duas táticas, dois resultados, uma única criança visível. Você precisa de amigos. A voz de Clara nos lábios de Carol… Ou de Carol nos lábios de Clara? E o ruído da Remington Rand. Compulsivo. Bem diferente de mim, horas pensando para escrever apenas um parágrafo. Quanto suor e sofrimento! Para isso… Nada. A literatura não é nada! Caminhar na tênue linha que nos separa da psicose. O não-dito arquivado no inconsciente, esvaziado pelos atalhos da insânia, através de palavras, tentáculos alegóricos da desconstrução do mistério. Agrada Carol, apesar da preocupação, mas somente ela, o velho quando pegou um primeiro escrito torceu o nariz e queimou o papel com o fósforo. Não há de se viver dessas idiotices! Lembramos bem disso… Você dobrou a margem do tapete e o velho caiu com o texto na mão. Nenhum gesto meu a ajudá-lo a se levantar. O pai assomando na nossa frente, a sombra da mão em movimento, o tapa no rosto, a queda, você ria. Os passos… Clara entrando e ajeitando meu rosto no seu peito, o velho saindo em resmungos, a sineta, o bater da porta… O silêncio. Estou saindo, volto logo! De onde a voz? Clara não responde, nem Carol. Eu na cozinha, fantasma, o gato arrepiando-se todo ao perceber minhas mãos na direção dele. A velha Remington Rand silente. Deve ter saído, talvez para comprar cigarro, suicida-se com o alcatrão, mais as substâncias radioativas, mais os metais pesados, mas haveria algo mais dramático do que a própria vida? O corpo podre por dentro, o gosto de sangue na boca, a dor na coluna, mas os dedos teclando, até o último momento, poetizar é simular essa podridão interna, dar ares sublimes ao infecto.
O duplo, nariz aduncado, entra no bar, olha na direção onde me encontro, ignoro-o, compra um maço de cigarros, não espera o troco, acende um, insiste em me olhar, eu sou o vazio, deixo-o sair e sigo atrás, vontade nenhuma em continuar, mas ele insiste, quer terminar uma grande obra, não com minha ajuda, não mais, a ficção foi nossa vida, o mundo é essa ressaca ao redor, lugar onde os pés criam raízes e a cabeça tem os neurônios vaporizados pela luta para sobreviver, no canto uma mulher caída no chão, mas a situação não chama a atenção de ninguém, se morta, é um fato irreversível, viva, levantará e seguirá o interrompido. (continua)