Aceitou o convite. Deixei-a na porta do local procurado, um prédio de três andares. Agradecida, cedeu um sorriso que eu fiquei a contemplar, a mão de longos dedos e esmalte vermelho nas unhas segurando a minha, até arrancá-la e entrar no prédio, eu torcendo, um último olhar, mas ela desapareceu no corredor, eu ali estonteado, Carol, deixou o nome no ar, agora diante de mim… Já vou, é só terminar o parágrafo. Mentira. Parágrafo nenhum, ideia nenhuma, nem Carol mais aqui. O menino aguarda um gesto meu, eu fantasma dele, no presente do futuro, muito antes de estar, o pai gesticulando, irritado, pela expressão o menino sabia o pai irado, eu incomodado, fujo amedrontado pela emoção presente e refugio-me na voz de Carol. E se o pai voltasse a ser o mesmo de antes? Era a preocupação. Nunca mais, disse o médico, mas ele sempre presente, aí está toda poética da retomada, esse brincar com o tempo. As cartas sem leitura… O corredor com os fantasmas, a sineta, a louça por lavar, acumulando, Carol… Fantasmas não ficam paraplégicos ou dementes.
A mesa vazia, o pão amanhecido, é só umedecê-lo, o resto fica por conta do micro-ondas, disfarça o envelhecimento, com manteiga fica mais macio, a casa é quase sepulcro, eu quase cadáver, a velha Remington Rand tecla sozinha, as palavras tem vida própria, são polifônicas, permitem meus sopros e ventos, sei disso, você aceitaria um ovo, mas eu estou saturado de comer ovos, sejam fritos ou cozidos… Sou o que está diante de mim – e não sou; ele é o que sou – e não é. Que ruído será esse? É você que me pergunta. A marcha ceifando o assoalho. Corro na intenção de ver e ouvir sua dor. Não me reconhece nem me vê. Tem os olhos na direção da criança de cócoras e assustada no canto, mas há outra criança que ri da desgraça, quer vê-lo longe da casa, mas esse ele também não percebe, ou finge que não, e as duas crianças correm ao percebê-lo caído no chão. Eu nada posso daqui, nem ali poderia fazer alguma coisa, Clara sentada na cadeira, mãos segurando o rosto, o que seria de nós? Carol, que é de você? O jantar na mesa… Os meninos mortos-vivos. O outro de mim na repartição, o ruído da velha Remington Rand vindo do escritório… De quando? Quem? Eu aqui na cozinha, o gato na pia bebericando água na torneira, só ossos, é preciso um de nós sair para comprar ração, senão será mais um cadáver dentro da casa, mais um fantasma, como eu, o cheiro de fezes e urina do animal, a ferrugem na geladeira e no fogão, a porta da cozinha e que dá no quintal, emperrada, mas a jabuticabeira lá onde não mais, carregada, os lábios e língua na vulva de Carol, fruto suculento, fruto perpétuo, só a morte tem direito a uma última degustação, saudade apenas, das pernas, do gozo e das mãos de dedos longos de Carol, os mesmos dedos que retorcidos junto ao desvio dos olhos e aos movimentos do corpo, convulsão tardia disse-me o doutor, precisamos investigar, chegou-se à condenação, seis meses, Carol deixou de ser, foi outra coisa, ficou agressiva no início, depois entrou numa apatia extrema até morrer afogada pela própria secreção. Ficamos, eu e meus outros fantasmas, no aguardo do retorno de Carol, demorou mais, surgiu sem menos, atravessou a porta de madeira maciça, perambula pela casa junto aos meninos, Clara e o pai. Os gatos… Já sento Carol! Por que insiste? Por que insisto? O caldo verde sobre a mesa, ainda quente, o estômago incomodando, embebido em café, álcool e cigarro. Quanto tempo na cozinha? É importante saber? Eu já homem… Clara e Carol.
(continua)