“A reinvenção da Europa” de Vasco Graça Moura | por Vamberto Freitas

É claro que, considerando a construção de uma unidade europeia política, não podemos deixar de falar das tentativas imperiais dessa construção, aliás impostas pela força, de cima para baixo, e pontuadas pelo fracasso ao longo dos séculos.

Vasco Graça Moura, A Identidade Cultural Europeia

Vamberto Freitas

Não, não estou tão fora das minhas áreas habituais e de eleição nestas páginas. Eventualmente, a literatura abrange tudo que é humano, eventualmente tudo que é humano abrange a literatura. Ao contrário do que (me) diziam os últimos dos New Critics americanos a fins dos anos 60 e durante a década seguinte, quando foram desaparecendo de cena na academia, a história fora do texto tem importância na nossa apreensão de significados, a ignorância reduz definitivamente o prazer do texto, a absorção de contextos que nos clarificam a mais leve insinuação de um narrador ou narradora, que, juntamente com o tom da sua voz, pode virar todo o sentido de um passo, ou mesmo do texto no seu todo. Diziam muitos deles o mesmo sobre os desnecessários conhecimentos biográficos de um escritor sob a nossa atenção – ou a sua obra se “auto-segura” sem mais referências exteriores às suas palavras, ou não vale nada. Tudo isto para vos dizer, sem nunca deixar de prestar homenagem aos meus antigos mestres, que um conceito de cidadania e o tentar perceber um pouco melhor o nosso tempo e tudo o que influi quotidianamente nas nossas vidas é material legítimo para análise e comentário, é fonte de esclarecimento na leitura de qualquer narrativa, para lá da forma ou do género. Quando um conjunto de textos aborda o tema primordial da nossa identidade, e de identidades-outras, próximas ou distantes nos nossos destinos, teremos uma parte fulcral do que é feita a melhor literatura, desde os gregos aos nossos dias. Quando esses ensaios compõem um livro da autoria de um escritor como Vasco Graça Moura (falecido bem pouco depois de alguns destes escritos terem sido publicados por outros meios), que cultivou praticamente todos os géneros literários entre nós e nunca descurou as suas obrigações de intelectual público, regressando sempre à História para contextualizar arte e opções ideológicas da nossa contemporaneidade, as suas e as dos outros, lê-lo, para mim, tanto é um acto obrigatório como de prazer, de confronto com novas perspectivas e olhares sobre uma realidade europeia em suposta construção. Tudo o que determina e influencia a vida do nosso país, desde o mero gesto na compra seja do que for, à cultura que nos molda ou nos tenta orientar em determinada direcção, à arte essencial que daí já brota em toda a sua inevitável multidimensionalidade, o autor comenta directa ou implicitamente nestes seus escritos.

Ler Vasco Graça Moura, neste seu A Identidade Cultural Europeia, é continuar a ter, repita-se, uma das mais significativas referências intelectuais dos nossos dias. Esqueçamos por agora a sua obra poética, ficcionista e de tradutor dos clássicos e outras peças fundamentais da literatura ocidental, e lembremos as suas intervenções regulares na nossa imprensa. Na defesa das suas opções ideológicas nunca se escondeu sob um palavreado ofuscador tão da nossa tradição intelectual, de vozes que parecem cheias de medo e calculismo. Lei-o precisamente por estar nos antípodas das minhas próprias lealdades políticas e mundividências, por saber que em cada questão de cultura ou cidadania haverá, felizmente, outros pontos de vista, outras crenças que interpelam as nossas, nos poderão sugerir a necessidade de as rever, ou então de reafirmar o que pensamos e defendemos. Tenho de confessar que a questão da Europa interessa-me só na medida em que poderá conduzir o nosso país, as nossas vidas, o nosso futuro, numa ou noutra direcção. Nestes anos mais recentes, falar da Europa entre nós é falar de dinheiro e crise, da má fé de uns e de outros, de interesses bancários obscuros, de tentativas hegemónicas dos mais fortes no continente, da perda de soberania e auto-estima nacional, da nossa casa atlântica e dos afectos históricos a sul, da expansiva geografia da nossa língua em todos os outros continentes e algumas ilhas circundantes. Vasco Graça Moura não ignorou nenhuma destas áreas de questionamento essencial numa sociedade bem formada, com uma suposta e activa elite consciente das suas obrigações colectivas, o que nem sempre, como se sabe, tem sido o nosso caso. Creio que a pergunta do autor que subjaz a este magnífico conjunto de ensaios é simples – o que é a “cultura europeia” e como nos temos integrado, e nos integramos, nesse espaço da mente criativa e da tradição cívico-cultural? Por outro lado, quase parágrafo a parágrafo, Vasco Graça Moura reafirma que sem essa componente de todo o projecto em construção de uma União Europeia autêntica, pouco ou nada vai restar que valha a pena a longo prazo, ou para além dos interesses imediatos e da troca comercial de coisas. É nas resposta às primeiras questões que este pequeno livro brilha, e, para quem quiser, acrescenta muito mais ao nosso saber da arte em geral, e que hoje está firmemente espalhada pelo resto do globo, o Ocidente sendo aqui definido como estando geograficamente localizado neste continente e na sua expansão e forte presença nas Américas, de norte a sul. Vasco Graça Moura reafirma aqui repetidamente a aliança especial com os Estados Unidos, tanto como defesa da paz entre nós como no restante mundo, como de partilha de prosperidades ou no confronto com realidades inesperadas de toda a natureza, e vindas de fora dessa esfera de poder e influência. Como pessoa de dupla cidadania, não tenho nada a dizer, só apoiar sem reticências tudo o que, a esse respeito, ficou escrito pelo seu autor. Traçando a história das muitas tentativas de se “unir” a Europa pela força das armas e não da razão, e agora, finalmente, através de uma persuasão que inclui o argumento das nossas raízes culturais (greco-romanas) e religiosas (judaico-cristãs), Vasco Graça Moura reconhece o buraco negro – estas palavras são minhas – que aparentemente estancou todo o projecto, se bem que as suas possibilidades continuam bem vivas, mesmo após ou nesta grave crise financeira e do inegável conflito norte-sul, a noção da essencialidade de defesa comum, no entanto, tornando-se muito mais do que teórica num mundo violento e frontalmente ameaçador ao nosso bem-estar e à nossa paz. As suas advertência sábias, esperemos, não poderão nunca ser esquecidas ou ignoradas por quem lidera o processo em curso.

“Embora o primeiro encontro – escreve ainda o ensaísta em ‘Símbolos de Uma Identidade’ – que reuniu todas as nações europeias tenha sido o Congresso de Viena, em 1815, só a partir do fim da Primeira Grande Guerra Mundial e, em especial, de meados do século XX, é que o princípio da concórdia entre os povos europeus sucedeu ao princípio do conflito e foi assumido como tal no discurso oficial, muito embora dificilmente se possa dizer que tenha sido interiorizado como devia por parte dos cidadãos. Com a passagem do tempo, vê-se com uma nitidez cada vez maior que a identidade europeia corresponde a uma construção intelectual muito mais do que a um sentimento interiorizado do cidadão comum, que, todavia, durante muito tempo viu na Europa politicamente organizada, sob as formas de CEE ou de União Europeia, uma fonte de financiamento mais ou menos ‘inesgotável’ de necessidades básicas e até das necessidades supérfluas”.

A Identidade Cultural Europeia oferece muitíssimo mais aos leitores do que uma dissertação sobre a problemática histórica e actual que envolve a construção de uma Europa unida. A vasta erudição de Vasco Graça Moura abrange tanto a literatura como as outras artes mais presentes nas nossas vidas, a pintura e a música. Não encontramos apenas referências ou citações ocasionais numa pretensiosa demonstração de saberes. Cada nome mencionado, cada obra referida neste contexto específico do seu tema, interliga pensamentos, mostra a ligação entre os povos e as suas criações ao longo dos tempos, mostra como as artes reflectiram sempre o seu tempo, as suas origens e influências recuadas até à Antiguidade, as suas “mensagens” e a suas estéticas intimamente ligadas a um espaço geográfico preciso, ou cultural, adentro do continente no seu todo, oferece-nos interpretações e reinterpretações de um complexo e diversificado passado de povos que “existem” lado a lado mas não convivem, e ignoram ou menosprezam as tradições multi-seculares uns dos outros. Estas são páginas que carregam em si com naturalidade um certo optimismo quanto a um outro futuro e entendimentos no que conhecemos, uma vez mais, por Ocidente. No mínimo, é intelectualmente uma divergência bem-vinda nestes dias de turbulência generalizada e ausência de rumo global.

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Vasco Graça Moura, A Identidade Cultural Europeia, Lisboa, FFMS/Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014.

FONTE: http://vambertofreitas.wordpress.com/2014/11/01/a-reinvencao-da-europa/