Raimundo | Conto I | Colectivo Nau | Cristina Drios

Dizem que Raimundo conhecia muito mundo. Eu, com toda a sinceridade, não tenho assim tanta certeza. O lugar dele, aqui ao lado, está agora vazio e é fácil dizerem coisas, aqueles que não privaram e não o conheceram como eu o conheci. Continuam a passar para cima e para baixo, de bata branca, a espreitar pela porta entreaberta e a perguntarem-me se estou bem, sorrindo. Levaram-no hoje de manhã, embrulhado num lençol, e já estava frio. Que morrera, soube-o eu quando, de madrugada, deixei de lhe escutar a respiração. Como Raimundo se foi, nem reparam, mas eu já saí daqui, também já cá não estou.
Eles pensam que não, vêem-me sentado, a tamborilar os dedos, a minha cabeça a rodar devagar, as mangas da camisa enroladas acima dos punhos e os pés magros enfiados nos chinelos. Mas eu engano-os bem porque já cá não estou, estou muito para além das grades da janela, ao sol, num campo florido, do outro lado da rua, do outro lado do mundo. Farto-me de viajar, às vezes de olhos fechados, quase sempre de olhos bem abertos.
Subo uma ladeira em Valparaíso, navego no lago Inlé, escalo os píncaros do Evereste, sigo uma caravana no Sahara. Vi fotografias desses locais nos livros do Raimundo. O Raimundo, esse, nunca me queria acompanhar, tinha sempre imenso que fazer, dizia-me. Por isso afirmo, não sei se conhecia muito mundo embora passasse quase todo o dia, embasbacado, em frente de um televisor silenciado. De resto, só sei que nasceu na Cuba, a alentejana, não em Cuba, a do Fidel, o que, ao longo dos anos, se prestou à mesma piada estafada.
Eu sim, saía daqui, já cá não estava. Saía às cavalitas, de cavalo, camelo, burro, elefante, às escondidas. Só os meus olhos sorriam: engano-os a todos. Engano-os duplamente: primeiro porque julgam que cá estou e não estou, depois porque julgam que me comporto bem – sempre calado e quieto – e na verdade não quero saber (mesmo) nada disto.
“Então, Josué, como se sente hoje?” A mulher fala naquele tom morno de quem encontrou areia na praia. Chateia-me imenso, não a pergunta em si, coitada, uma pergunta perfeitamente aceitável, atendendo-se ao contexto. O que me aborrece é que cada vez que entra alguém, que me chega uma pergunta, sou obrigado a suspender a minha viagem e a regressar.
Esse regresso tem necessariamente de se processar de uma forma muito, muito rápida e sem qualquer hiato. Volto a velocidades supersónicas e, de imediato, estou de novo aqui sentado, na minha amiga cadeira de trinta e seis anos que já ganhou a forma do meu rabo, a dizer, porque não tenho mesmo mais nada para dizer à mulher, “ai sim?”
Quando não sou suficientemente rápido a regressar, ela corre o risco de levar uma resposta torta e sair melindrada, sem que faça a mínima ideia porquê. Provavelmente é por isso que, às vezes, recebo portas a bater, amuos em vez de bons dias e, à hora de dormir, mais comprimidos para engolir. A mulher também deve ter mundo para onde ir quando está farta disto, hei de lhe perguntar um dia destes. Sei que tem umas pernas bonitas, bem torneadas e depiladas e o pano da bata cai-lhe exactamente abaixo do joelho. Certa vez tentei apalpar-lho e ela ralhou-me: esse é um mundo que conheço mal.
Se calhar devia sentir remorso, denunciar esta gigantesca fraude. Agora sei que esse dia chegará, mais tarde ou mais cedo. Nessa altura, deixarei este lugar que ocupo há trinta e seis anos, sempre a fingir que aqui estou e levantar-me-ei desta cadeira e, a dançar na alcatifa ruça – juro que dançarei todo nu na alcatifa ruça –, e partirei para não mais voltar. O Raimundo deixou-me e não tive tempo de me despedir, quais felicidades, boa viagem, qual quê, volta sempre, não voltes nada, leva-me é contigo… Não lhe levo a mal ter-me deixado sozinho, o Raimundo sempre foi muito solitário. Quando eu partir também, não tenho nada para encaixotar, catalogar ou arrumar. Não levarei nada, não há nada aqui que valha a pena – nem sequer, muito menos, os velhos livros que o Raimundo abandonou na estante. Já os folheei demasiadas vezes, não preciso deles. Na verdade, estão repletos de mentiras, de sítios que nunca foram nem serão o que mostram as fotografias.
Ao Raimundo eu contava um segredo: gostava de ter uma mala debaixo da cama cheia de maços de notas atados com fita adesiva preta como vi num filme antigo, a preto e branco. Estaria sempre pronto se surgisse uma oportunidade: com o dinheiro compraria o que precisasse, de comer e de vestir, em qualquer lado. O meu sonho era dar a volta ao mundo num transatlântico. Este que está na minha cabeça já começa a ficar acanhado e o ar que se respira a bordo meio inquinado. Por vezes, enjoo e vomito. Depois vem a mulher das pernas bonitas e dá-me mais comprimidos para engolir. Além disso, estou sempre a cruzar-me com os mesmos passageiros. O Raimundo era um deles. Agora só restam a mulher e os outros, os das batas brancas, que de vez em quando espreitam pela porta entreaberta e perguntam como estou.
No entanto, não dou por mal empregues estes trinta e seis anos. Eram necessários, tinham de ser vividos de alguma maneira e não encontrei outra melhor. Fez-se a vontade a pai, mãe, amigos, enganando-os a todos bem enganados. Está quase a chegar o momento de fazer à minha vontade; um grito do Ipiranga ecoará neste quarto bafiento. À noite, depois da mulher sair, ponho-me nu. Tomo de uma vez todos os comprimidos que fui cuspindo e guardando debaixo de um taco solto do chão disfarçado pela alcatifa. É definitivo: já saí daqui, já cá não estou, só que ainda ninguém sabe. E eles dirão que o Raimundo e o Josué conheciam muito mundo.

Cristina Drios