Nesta minha terceira Flip, encontro um evento muito mais institucionalizado do que a versão de 2006, quando ainda era fácil conseguir ingressos para as tendas dos autores durante a própria festa, e comer em restaurantes como o Banana da Terra sem ter que fazer a reserva “de São Paulo”. Deste restaurante, aliás, é que escrevo hoje. Meu blackberry chama menos atenção do que seu arcano antecessor de 4 anos atrás, e menos ainda do que a mesa onde janta Salman Rushdie, confortável entre público não hostil.
A propósito do espanto que os rigores islâmicos têm causado na mídia brasileira recente, hoje a mesa mais marcante foi aquela dividida entre o israelense A. B. Yehoshua e a iraniana Azar Nafisi, e mediada por Moacyr Scliar. A simpática e elegante Nafisi observou a um dado momento do debate a dificuldade de estar ladeada por dois escritores, homens, experientes e com impressionante número de publicações, ao que o escritor brasileiro acrescentou: judeus.
Provavelmente o ateu e sionista Yehoshua se sinta menos judeu que Scliar, a julgar pela personagem central de seu livro mais recente (Fogo Amigo), um septuagenário autoexilado na Tanzânia que quer livrar-se da “lambança judaica”, para quem, se não existe desligamento permanente, que seja apenas temporário…
Como disse ontem William Gordon, o “Mr. Allende”, um advogado que virou escritor, nunca se deixa totalmente de ser advogado, sempre fica um resquício. O mesmo se pode dizer do desligamento desejado pelo protagonista de Fogo Amigo, e que reflete a dualidade do autor, de quem ora sobressai o notório pacifismo, como quando clama pela ajuda internacional para a solução dos conflitos no oriente médio, e ora mostra certa intolerância, como quando se disse enojado pela comparação feita por Saramago entre Auschwitz e Ramallah. Saramago veio à tona depois que Yehoshua citou o trecho bíblico sobre a vida de Caim (ou como este recebeu um “upgrade” incompreensível para um fratricida, por força de quem manipulou a escrita da Bíblia) e uma espectadora perguntou se ele havia lido a obra com o nome do filho de Adão, de autoria do Nobel português.
Essa interessante dualidade do autor israelense resultou também no único momento em que Azar Nafisi pareceu desconfortável, quando foi repreendida em público pelo colega de mesa, que a instou a não colocar a culpa apenas em governos, como alegadamente ela o teria feito em Lendo Lolita em Teheran, sua obra mais famosa. A escritora ensaiou um mea culpa diante da veemência de “A.B.”.
Antes da reprimenda, Nafisi mostrou-se desenvolta e lúcida, arrancando aplausos entusiasmados da plateia. Para a iraniana, a literatura é existencial, e não política. Quando ela é independente da política, ela torna-se subversiva e revela a verdade. Prosseguindo, ela afirmou que a boa literatura faz refletir, faz pensar e ficar inquieto, e citou Salman Rushdie.
Nafisi não se esquivou de perguntas provocadoras, como aquelas sobre o posicionamento do presidente Lula a respeito da condenação à morte de Sakineh Ashtiani, ou as recentes regras francesas proibindo o uso da burka em público. Conhecida por seu posicionamento contrário à obrigatoriedade do traje feminino em certas partes do Islão, Nafisi mostrou-se decepcionada por uma lei impositiva, que não foi discutida com a sociedade, deixando de assimilar um importante grupo étnico que hoje habita a França. Mostrou com isso saber balizar suas próprias posições com o imperativo de respeito às liberdades individuais. Com relação à visão inconstante do nosso presidente, que inicialmente pretendia não intervir para não “avacalhar”, e posteriormente aceitou acolher a mulher que deixava desconfortável seu amigo déspota, Nafisi foi categórica: democratas não podem ser amigos de ditadores, e desconfortável é morrer apedrejado. Hurras da plateia.
Nafisi salientou, por fim, que seu país não deve ser lembrado apenas por seu líder não eleito e por leis surpreendentemente brutais aos olhos das nações ocidentais do século XXI, mas também por sua história rica e milenar, por seu legado que vai da poesia à matemática e por Rumi, para quem não fazia diferença, como local para louvor, estar numa sinagoga, numa igreja ou numa mesquita.
Depois dessa lição de respeito à diversidade, lavei a alma com uma massagem num encantador spa asiatico no escondido bairro do Caborê (a caminho do qual passei pela igreja O Brasil para Cristo, que pelo fervor dos cantos parecia alheia à reflexão que ocorria a poucos metros dali) e me refestelei com um robalo elegantemente coberto por uma crosta de pimenta limão, que me evocou a obra de Muriel Barbery sobre o gourmand que buscava ao fim da vida o sabor essencial.
Mauro Finatti