O Homem do Turbante Verde, de Mário de Carvalho

“Quanto ao professor, estava manifestamente a mais nesta fase da expedição e todos pareciam concordes com isso.”

A trama parece, desde o início, revelar o seu desfecho final, como se no plot traçado não tivesse implícito um volte face. Uma mestria que faz destes contos uma verdadeira aventura para o leitor. São vários os ambientes percorridos por estas narrativas, desde os mais exóticos, ao conturbado período de sobrevivência à ditadura portuguesa. Em todos, um tema comum, uma certa crueldade que parece contida na mente e atitudes dos homens, que se liberta ao sabor do acaso ou do destino. Um mal sem objectivo aparente ou moral assertiva.

 

A escrita destas narrativas curtas é cuidada e clara, dotada de apontamentos fora do léxico comum que reforçam o ritmo da acção. “Num instante, a multidão oscilou, dividiu-se, sombras correram, a vaia modelou-se em vozeios diferenciados, crepitaram ruídos corridos de passos, desaustinaram tropeios de botas.” E tudo ficou dito sobre a multidão em fuga sujeita a uma carga policial. Toda a emoção e toda a tensão num ritmo desaustinado, num relato perfeito. Dispensam-se mais palavras.

Existe também um demorar nos pormenores, um olhar atento sobre os personagens, mesmo os secundários, sempre descritos com eficazes apontamentos breves e que denotam uma atenta capacidade de observação. “Era um homem instruído, mas muito tranquilo de espírito.”, para definir alguém que, numa passagem fugaz pelo conto, caiu nas manhas da Dama, ou então, esta descrição do funcionário do partido, “…uma entidade misteriosa, com o seu quê de benévolo e protector, que media as palavras e procurava desmaterializar todas as circunstâncias que pudessem ser associadas a uma pessoa.” Não são descrições físicas, mas remetem-nos igualmente para esse domínio da percepção material dos personagens.

E sempre uma fina ironia empurrada pela ponta do aparo para o contorno das palavras escolhidas a preceito, “Repara que os dedos grossos do funcionário procuravam anotar as suas palavras, com dificuldade, o lápis entorpecido, lento, custoso, quase sem sair do mesmo sítio.”
Ironia que se estende ao próprio narrador, “Perdi muitas das palavras dela, poupa-se-me o trabalho de as reproduzir.”

A violência e crueldade contidas nestes contos, num quase ritual sacrificial, são, tal como a morte, encaradas com desprendimento emocional, “- Foi chamado. Subiu aos céus. – Comentou tranquilamente a Dama, enquanto se levantava.”
Uma ironia construída a partir de uma falta de fé na capacidade da humanidade em mudar o seu destino ou o mundo que a rodeia. Um vazio onde se instalam a violência e a crueldade, nem sempre descritas, apenas simuladas, induzidas no espírito do leitor, em mácula contaminadora.
Da janela da sua casa, um jovem casal observa um homem ferido, prostrado no meio do largo. O rapaz pretende retirar-se, mas a rapariga insiste, “A estas horas está quase a passar a grua da pedreira. Quero ficar a ver.”
“Ouve-se o ronco dum motor que se aproxima. Uma zoada a vibrar cada vez mais na cabeça do homem. À entrada do largo, faz estremecer pedras e esquinas.
– É agora! – animou-se a rapariga. E apertou-se mais contra o rapaz.”

A percepção do perigo e do que realmente aconteceu é induzido na mente do leitor. Vemos a cena como se esta nos tivesse sido narrada de forma física e factual: o homem do largo a ser trucidado pela grua da pedreira. Um momento de grande violência que se segue àquele “E apertou-se mais contra o rapaz.”, com que a escrita do conto termina. Um acontecimento que, não tendo sido narrado, faz parte da história, da sua maneira de ser contada. A boa escrita é assim, fica a trabalhar na mente do leitor, muito para além das palavras.

Texto publicado no Acrítico, leituras dispersas em Abril 2013.

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