«Fenistrigalva – corpo de brisa e alma de fogo» | Dalila Moura Baião

Rompia o mês de Maio, por entre manhãs cálidas, embriagadas de tímidos sóis, rasgando verdes sorrateiros que iam adornando a natureza, sulcando orvalhos matinais.
Campos adormecidos despertavam mais uma vez da letargia de um sono invernal.
Eram como rufares de tambores que aos poucos, vindos de longe, se aproximavam para a grande festa do Renascer.
Em mais de mil pares de olhos, renascia também a esperança que Fenistrigalva emergisse de novo, do local onde era esperada com ansiedade e, mais uma vez, rodopiasse na sua dança, que dança e encanta, que cansa e descansa, de tremor e esperança.
Ano após ano ela era esperada. Ano após ano era desejada, nunca possuída, mas sempre ansiada.
Cada vez que voltava, com ela trazia a vida. Por isso, em cada Maio, era esperada com sofreguidão.
Se Maio partisse e ela não chegasse, era presságio de maus agoiros: o sofrimento, a fome, a destruição.
Maio caminhava. O seu percurso já ia em meio e de Fenistrigalva, nem sinais.
Os mais velhos diziam que viria, que nunca tinha falhado desde que se conheciam como gente.
Os mais jovens e adultos maduros, já duvidavam que ela aparecesse e antecipavam estratégias para abrandar a sua fúria.
A criançada desenhava no chão a sua imagem e colhia pequenas flores fugidias que iam salpicando a planície, dizendo querer fazer uma coroa, para enfeitar os seus cabelos.
E que cabelos ornamentavam Fenistrigalva!
Eram como trigais que ondulavam ao vento e gritavam liberdade, como quem apregoa: – Vida, eu te possuo!
Nunca ninguém a tocara ou pudera sentir o calor daquela pele, mas todos pressentiam a maciez do seu corpo (será que era um corpo)?
Falar do corpo de Fenistrigalva, era tentar adivinhar se as chamas que irrompiam de si, eram línguas de fogo que se soltavam no ar, ou labaredas que a prendiam na tal dança feiticeira que a tornara tão especial.
-Não podes faltar, Fenistrigalva! Pareciam gritar as bocas mudas de silêncios.
– Tens que arder e dançar; voar e rodopiar! Imploravam os olhos atentos dos que a esperavam.
De Fenistrigalva, nem sinais e Maio continuava a ser tempo, num Tempo. Nunca assim tinha demorado!
Será que viria? Será que a vida continuaria no ritmo cadenciado a que cada um já estava habituado?
Por certo não haveria eclosão de vida, a maldição a que fora destinada, prendeu-a para sempre.
O fim parecia estar próximo. Era a destruição.
Por Maio tinham passado trinta noites enluaradas, trinta manhãs ensolaradas, trinta esperas delirantes, confiantes, desesperadas.
Em mais de mil pares de olhos, a dúvida castrava.
Resolveram fazer fogueiras num círculo, onde espigas de trigo foram deitadas em molhos enlaçados, embebidas de luar.
Sentaram-se à volta. Era a última noite de Maio.
As estrelas faiscaram. A lua enviava pedaços de cetim.
Ao longe, muito ao longe, algo acontecia, que ainda não era possível adivinhar.
De repente… Que foi feito das estrelas? Do luar?
O céu escureceu! Na terra, os corpos tremiam.
Era a maldição! Não viria mais Fenistrigalva.
Um trovão! Um rufar de tambor, outro trovão. Rufam tambores, que inundam de sons fortes, o círculo mítico onde as espigas aguardam. É a maldição dos deuses que se avizinha.
Nisto, rasgou-se a terra, romperam-se sulcos, beberam-se luares.
Fenistrigalva apareceu! Majestosa e imponente.
Dançou e encantou, numa dança inebriante que convidava à vida e ao amor; à paz, ao fulgor.
No seu fogo fez arder as espigas de luar, com os seus cabelos enlaçou os homens e fê-los acreditar. Todos a sentiram, ninguém a pode tocar.
Ela era a Vida, a própria vida que renascia em cada Maio que acontecia.
Desta vez demorou mais; fê-los duvidar mas renasceu e no último dia, a 31 surgiu e desapareceu, levando para os confins da Terra a maldição, que no seu fogo queimou.
E Maio adormeceu! Descansou!
Não ficaram cinzas; ficou a Vida, para ser conquistada em cada dia, abençoada por Fenistrigalva que partia e ressurgia.

Dalila Moura Baião