EXCERTO | Do Livro «Uma Estátua no Meu Coração» | Soledade Martinho Costa

 

 

Não me lembro do ano em que voltei à casa da minha avó. Nem vou voltar nunca mais, embora a casa continue lá. Quando voltei, tinham passado muitos anos, tinham emudecido todas as vozes. O silêncio, tão grande! Ao contrário do espaço, muito mais pequeno, revisitado agora com os meus olhos adultos. Mas lembro-me de todos os recantos da casa, de muitos objectos, dos móveis: do armário, muito antigo, de madeira avermelhada e polida, alto, quase a tocar o tecto, com duas largas portas envidraçadas. Pertencia à minha tia Maria Eduarda. E eu a pedir, sempre que ia de visita a casa da avó Maria Estrela: –Tia Maria Eduarda, posso ir ao armário? E a minha tia, a sorrir, a dizer-me logo que sim, mas a avisar: – Olha que não tenho lá nada de jeito, filha! Mas tinha. Tinha sempre: um pedacinho de bolo, um frasquinho de mel, um naco de marmelada, doce de tomate, uns biscoitos. E eu, que não era gulosa, a saber-me tão bem comer um bocadinho de qualquer coisa que a tia guardasse. Havia outro louceiro (naquela altura chamado «aparador»), o da tia Bé, despido de qualquer gulodice. Menos antigo, mas também com diversos encantos para mim: um aquário que nunca viu sequer um peixe, colocado sobre a pedra mármore, com duas aves de asas abertas, pousadas no rebordo de vidro, e um arlequim de loiça vestido de preto e branco a tocar um harmónio. Na parte de cima, chávenas de chá muito ordenadas na sua fila, penduradas nos grampos, a estremecerem quando o soalho, ao peso dos passos ou das nossas correrias de criança, as fazia baloiçar, levemente, num pendular gracioso, ao som do tilintar dos copos – que não eram de cristal. Em baixo, as duas portas onde o meu tio Zé guardava alguns livros e revistas, principalmente as revistas do tempo da guerra, a mostrar ao nosso olhar da infância (sempre que, por descuido, as portas ficavam abertas) os horrores dessa época, imagens de homens, mulheres, crianças, soldados, aviões em chamas – aviões em chamas que, passados tantos anos, guardo ainda na memória dos meus olhos. E o cheiro da tinta dessas revistas. […] E as janelas, tantas janelas na casa! […] Noutras dependências, muitas, muitas outras coisas, de que me recordo. De que me vou recordar sempre. Porque será que a infância e o que a ela está ligado nunca se separam de nós? Quanto mais o tempo passa, mais se vive do passado. Isto é, quanto mais envelhecemos, mais nos aproximamos da infância, dessa infância que se agarra à nossa pele, aos nossos olhos, ao nosso coração. Muito mais os rostos e as vozes daqueles que já cá não estão, e nos amaram, nos fazem companhia, nos falam e nos escutam nas palavras que não dizemos.

Soledade Martinho Costa

Do livro «Uma Estátua no Meu Coração»