As Mulheres do Fonte Nova, de Alice Brito

Neste livro existe um personagem da dimensão de uma cidade, sendo ele próprio essa cidade. Uma cidade montada na garupa da miséria, alcoviteira e má mãe. Não se lhe conhece a culpa, apenas sabemos estar contaminada de gente. A mão segura da PIDE conhece os que não são “da situação”, já lhes sentiu a pele. Espanta-se de gente esta cidade.

Numa linguagem forte que não se furta ao uso do palavrão – porque a vida, de tão madrasta, não merece outros cuidados – Alice Brito deixa-nos aqui o relato de uma época, onde a ditadura esbateu gerações e esmagou esperanças. Uma narrativa que ousa recorrer ao calão e aos ditos populares (que seguem a mesma lógica violenta e recriminatória dos palavrões). “Deus que a marcou algum defeito encontrou”.

 

Este livro penetra nas entranhas desta cidade, percorrendo-lhe as ruas, os seus cheiros, mergulhando na sua luz e traçando roteiros de vida sofrida. Respira esta cidade na escrita de Alice Brito. Uma cidade que também pode ser amada: “Quando falava da cidade as palavras saíam-lhe a cheirar a flor de laranjeira e rolavam claras, em gomos saborosos e eloquentes.”

A fome instala-se na vida destas gentes, como um inverno permanente. Gente pobre, gente comum que “só queria viver, sobreviver, trabalhar sem traulitada, ter uma bucha na mesa, passear aos domingos na Luísa Todi.” Gente que por mais pobre que seja ainda tem algo a perder, a preservar: a “sua honra”, coisa mais burguesa. E a cidade alcoviteira vigia, gulosa, salivando na antecipação do mais pequeno deslize. “Fora ela a culpada. Fora ela quem se tinha metido com o homem; fora ela quem lhe passava pela frente a oferecer-se, a grande puta, do que é que estava à espera…”

Neste livro, por detrás da linguagem máscula, existe o olhar sensível e lúcido de uma mulher. São elas quem mais sofre e quem mais tem a perder, carregando a sua honra entre as pernas. Naqueles tempos, os de Salazar, Setúbal vivia da sua produção de conservas. Os homens no mar, as mulheres nas fábricas e a fome um pouco por todo o lado. E os PIDEs na rua. Uma “Indústria de mulheres e está tudo dito. Indústria cheia de artes e segredos, cheia de lógicas próprias, perícias únicas e muita pulhice patronal.”

Ao longo do livro, ocasionalmente, uma voz desponta, uma voz contemporânea ao ato da escrita, ao nosso momento de leitura, que interroga a autora. Uma voz crítica, que vigia e chama a atenção: “Já disseste isso lá atrás…” Uma voz de mulher.

Revemo-nos nessa voz, incapazes de conceber um tempo como aquele, com as dificuldades de um tempo como aquele. Olhamos para essa época, em que fomos crianças, e não a conseguimos imaginar, não desta forma tão crua e tão dura como aqui é narrada. Este é o testemunho vivo e histórico deste livro. O seu tributo àqueles homens e àquelas mulheres, sobretudo às mulheres, as do Fonte Nova. O relato das dores e das fragilidades de um povo. Parece-nos uma realidade distante e, no entanto, tão próxima de nós, vigiando-nos, pronta a saltar-nos de novo em cima.

Devíamos ser um pouco como esta cidade, um povo espantado de gente.

 

Editora Planeta – 2012

As Mulheres do FN AB