Há quanto tempo morrera aquilo a que chamara A Viagem? Sabia exactamente o dia, a hora. Quatro da tarde, o sol perigoso, o abrigo do guarda-sol de riscas rosa e laranja. A mão na testa suada dele, em toque leve, hesitante. Vamos então? Posso marcar com a agência? Sentiu-lhe o estremecimento. Total, da raiz à copa. Disse não, já marquei. Levantou-se, pegou na toalha, nervoso. Sabes com quem vou. E, quase num grito, é melhor acabarmos com isto de vez. Foi no dia de Verão em que a noite se fez mais cedo, mais escura.
Olhou o relógio. Eram duas da tarde naquela terra em que o sol chegava uma hora antes. À mesa do almoço, incluído no pacote A Viagem, com mulheres que umas às outras se acompanhavam. As pernas pesadas, cruzadas com esforço. A Viagem estava a ser dura e o calor mordia-lhe as pernas dantes tão bonitas, a soltarem assobios nos olhos dos homens. Fitava a das argolas faiscantes, poderosa ainda. Se fosse como ela, quem sabe pensaria em, como se diz, refazer a vida, desfazer os anos, inaugurar, porque não, uma nova paixão. Foi um relâmpago de desvario que lhe trouxe os olhos azuis, magníficos, estuporados, de Donald Sutherland, no rosto fechado do jovem empregado que lhe atirava “Vous voulez quoi, Madame?” A carne. Estava mal passada, rosada no interior que ela exibia, de garfo e faca assestados na ferida.
A Viagem é também aquilo. Decidir, exigir, protestar, silabar Ca-pa-dó-ci-a quando dizem Palma de Maiorca, calar-se quando se erguem os Himalaias na voz maiúscula do Homem-que-já-deu-duas- -voltas-ao-mundo.
Tanto cansaço, tantas horas, tão longe o chapéu-de-sol às riscas, tão sem sabor A Viagem finalmente ressuscitada, tão diferente da outra, tão mal passada a carne.
Licínia Quitério, em Disco Rígido