A Casa Azul, de Claudia Clemente | António Ganhão

Dentro dos muros da casa azul, os quatro elementos primordiais.

Acreditavam os antigos que o mundo era formado por quatro elementos primordiais. Neste romance é-nos dado a conhecer um quinto elemento que aglutina todos os outros: a vida. Mesmo quando entregue a diversas vozes que, correndo desencontradas, nos chegam na primeira pessoa, por carta, relatórios ou vindas do interior em forma de agressão. Num momento de fuga, as asas abrem-se de acordo com a natureza de cada um dos elementos: terra, fogo, ar e água.
Se a terra e o fogo apontam para um conflito permanente – a vida lança as suas raízes na primeira, sendo tudo consumido pela força da segunda-, já a água e o ar surgem como elementos gémeos. É sabido ser na água que o céu se reflete.
O que nos completa? Tudo aquilo de que temos de nos libertar. Visitamos em sonhos a casa azul, os seus salões, os quartos, a escadaria circular, abrindo as portas uma a uma. Ao contrário dos espíritos, os sonâmbulos não têm a capacidade de atravessar as paredes. Sou então sonâmbula dentro dos meus próprios sonhos, e não um fantasma. Pela sua estrutura, este é um romance onde as vozes se vão encaixando, capítulo a capítulo, elemento a elemento. Fazendo parte uma das outras, contra todas as distâncias, como se pertencessem a um corpo que só faz sentido se for único, mesmo que se transforme numa inverosímil e disforme criatura. …ficava coberta delas, linhas finíssimas e claras na minha pele morena, como cicatrizes, nos pulsos e nos braços.
O romance abre com uma visita à casa azul, ou ao local onde existiu a casa azul, agora transformada num condomínio fechado. É um regresso de quem vem de longe para visitar a casa da sua infância e a quem a separação uma da outra não serviu de muito. Se subtraíssemos essas distâncias encontraríamos todas as respostas? Somos o que resta do rosto de alguém que nunca chegámos a conhecer? … tentava subtrair, uma por uma, das minhas feições aquelas que pareciam provir da minha mãe. Restava pouco.


Em Paris, naquele maio de 68, acontece uma revolução. Um casal jovem encontra-se de visita à cidade. Apanhado nos tumultos, faz a sua própria revolução, uma que não podia cumprir todas as promessas e libertar todos os espectros. Quando a fúria da maré recua ficam sempre destroços espalhados pelo chão.
A escrita da Claudia Clemente tem essa plenitude de quem pode correr todos os riscos e lançar-se em estruturas narrativas complexas. De quem sabe que o ritmo de um texto não depende da cronologia dos acontecimentos. Conquistar o leitor com temas por demais batidos – como a própria autora reconhece ao invocar Eça de Queiroz-, e fazê-lo com uma elegância e um nível de dissimulação que tudo transforma numa nova história, preso que ficamos à sua forma inovadora de a contar. Não é possível não se render a esta escrita.
Dentro de água as vozes calam-se. Acho que todas gostamos de nadar.

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Pouco antes de morrer, Pessoa pediu que lhe dessem os óculos. Quando o fez, já tinha escrito a sua derradeira frase, rabiscada a lápis num papel que ficou sobre a mesa-de-cabeceira do seu quarto, no Hospital dos Ingleses.
I know not what tomorrow will bring. Mesmo sem saber o que traria a Morte, o seu amanhã, o lado de lá que sentia tão perto, o Poeta quis olhá-la nos olhos, vê-la com nitidez, aperceber cada detalhe dos contornos do novo mundo que passaria a ser o seu.
Qual teria sido a última cor que o Poeta viu, com nitidez, antes de cruzar o limiar?
A minha última cor será com certeza o azul, o azul da casa.

António Ganhão

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