A constante reinvenção da escrita

Uma das surpresas do Verão – quando ninguém compra livros – foi animalescos, de Gonçalo M. Tavares, com edição da Relógio D’Água.

Com 43 anos, Tavares vai no trigésimo segundo livro e não esconde que o que fez sair é uma ínfima parte do que tem em casa para publicar.

À parte uma capacidade (a que o próprio chamaria necessidade) de produção fora do normal, o que distingue Gonçalo M. Tavares é a possibilidade de actuar em campos novos, até agora muito pouco explorados. A narrativa tradicional é suplantada por uma organização lógica e sintática que está muito mais próxima da tentativa de superação de obstáculos epistemológicos do que de criar sentidos comprováveis, justificar teses ou desenvolver um enredo que se baste a si próprio como motivo de interesse do texto.

Página 89:

latrinas

martelo

bigorna

Tens a chave das latrinas e tal é suficiente para teres o domínio da casa e aí começa a tua ambição que vai até ao centro da cidade, dá a volta e bate depois a cabeça contra a parede, uma ambição-martelo, bigorna, que quer partir o que está à frente, quer abrir uma passagem onde há uma parede, ou melhor, onde há uma passagem antiga, velha de mais, que se pensava já não poder ser usada

O livro é constituído por 39 textos, todos com títulos compostos por várias palavras com carácter independente. Logo aqui se percebe um princípio de fragmentação inerente à construção narrativa. É como se o texto não se fixasse num único eixo, e muito menos estivesse interessado em fazê-lo. Pelo contrário, nunca temos a certeza de quanto vai durar a frase e do que surgirá na frase seguinte. É também um Gonçalo M. Tavares mais quente, mais onírico, mais próximo de Canções Mexicanas ou Água, Cão, Cabeça, Cavalo. Aliás, os três volumes inserem-se num conjunto denominado Canções.

Não cabe neste editorial fazer uma análise técnica da obra, mas não deixamos de referir um uso pouco comum da pontuação, com ausência deliberada de vírgulas ou palavras grafadas a maiúscula – tal como acontecia em Canções Mexicanas. Grande parte dos textos iniciam-se com minúscula, e alguns como que surgem do nada, ou antes da primeira palavra que estamos a ler.

Trata-se de uma escrita em constante renovação, que nunca se acomoda com uma fórmula que parece já ter sido encontrada várias vezes e poderia criar algum conforto no acto de criação. Pelo contrário, a invenção continua, sem cedências, obrigando o leitor a encontrar uma nova posição para grande parte dos seus livros.

António Pacheco