68º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

De mim, a memória morta. Todas essas idéias apenas para ter coragem de ir até a máquina de escrever… Retiro a folha. Poucas palavras: “sem intimidade e sem interior, o oculto é o que se perdeu, a impossibilidade de dizer Eu, literatura nômade…” Me interromperam neste ponto. Será o reinício. Abro o pacote. Pego uma folha em branco. Ajeito-a na máquina. Troco a fita, fico com os dedos sujos de tinta. Ajeito a bunda na cadeira. Acerto as mãos como o pianista antes de iniciar a peça. Estou trêmulo, suando frio, o ruído da trava, alguém abriu a porta, tempo conhecido, de fechá-la novamente, pegar as cartas espalhadas pelo chão, deixar a chave no prego, dependurar o casaco, ruído da sineta, não ouço passos, o toque no soalho é muito leve, peso de uma pena caída na calçada, aí está você, aguardava-o, deixe a pasta sobre a mesa, sente-se na poltrona de couro de carneiro… De quem é esse livro? Nosso… Como? Esqueça, lá estão os olhos do bichano, está conosco novamente, você deve estar cansado, suportar a rotina ridícula da repartição, só para ter um salário que me permita ficar aqui diante da máquina de escrever. Mas acabou. Não sairemos mais. Veja os modos do bichano, acariciando com o rabo suas pernas, lá vai em direção da cozinha, está com fome, pode segui-lo, fico aqui um tempo mais, tenho uns acertos no texto, as cartas… Deixe sobre o móvel, não há nada de nosso interesse nelas, com certeza, não precisa me dizer, com você em casa começo a me lembrar das pessoas, vá, o gato está com fome, os azulejos brancos, as falhas provocadas pela falta de alguns, a ração deve estar no armário, aqui está, encho a vasilha, o gato bebericando água na torneira gotejante, coloco o alimento no chão, o gato pula e segue na direção da ração. Ouço o ruído de máquina de escrever, é o outro de mim, há uma mulher entristecida sentada na mesa da cozinha, observa-me de algum lugar, mas para mim é bem presente, não há tempos para mim, o gato pegamos na rua, faminto e com o rabo torto. Você não vai comer? O caldo verde que tanto gosto, ela me mostra um ovo, sorrindo, peço que coloque na sopa e me sento, sorvo lentamente o caldo, o gosto de infância nunca desaparece, é como o doce de leite, a pamonha, a maria-mole, o brigadeiro… Os caminhos estão descansando… Quintana nunca deixou que lhe roubassem a criança. De onde, a referência? As palavras podem se tornar mágicas, basta não enclausurá-las em vitrinas, o lugar delas é o silêncio, dali saem sempre renovadas…

 

(continua)