Na escola, foi difícil manter‐me atenta. O dia despontara a cheirar a Primavera. Sabia as estações pelos cheiros e pelas luzes ou trevas que perpassavam nos rostos dos que via, nos lugares por onde passava. Nessa manhã, não consegui decifrar a ausência de claridade nos olhares dos senhores de fatos cinzentos e gravatas de nós apertados com as faces muito bem barbeadas e cheirosas onde faltavam as marcas da juventude e de beijos. Traziam consigo sorrisos sem graça e não era capaz de os adornar com palavras ou ideias, como se lhes faltasse uma história.
Olhei a nuca escura de Irménia, sentada à minha frente, o cabelo muito preto, de trancinhas a desfazerem‐se, os ombros encolhidos e os cotovelos pregados à carteira. Houve um instante em que o pescoço dela parecia não suportar a cabeça e metade do rosto lançou‐me um grito estrangulado. Eu não podia fazer nada. Ali não se tratava de a salvar das palavras açoites ou dos gestos desprezo dos outros meninos que queriam vê‐la lavada da cor com que nascera. Até o nome lhe dificultava o resgate da sua condição de mestiça. Irménia das Dores era um nome que pesava como as pedras que escondiam tesouros no quintal da patroa da mãe, para onde eu e ela corríamos, nas tardes mornas de Verão. Era um nome curto mas molesto que tolhia os passos da Irménia e a impedia de fugir das mãos sebentas e ávidas do tio com pele de marfim que visitava a mãe, nas horas ociosas de domingo. Só eu sabia das suas dores. Dores que não tinham a ver com o apelido ou com o seu fraco estômago. Sabia mas não compreendia, naquele tempo em que procurava desesperadamente reter a minha inocência.
Julieta Ferreira