Um pobre mortal a correr atrás dos seus personagens

A pseudonímia tipo Vaticinium ex eventum constituiu uma prática textual muito antiga que atribuía a textos autores muito anteriores à sua enunciação, forjando assim a autoria e atribuindo-lhe uma autoridade e uma legitimação que doutro modo não teriam. Muitos textos proféticos do levante ibérico do século XVI foram atribuídos a Santo Isidoro de Sevilha (por exemplo os que constam no Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris), do mesmo modo que os textos de Isaías correspondem a épocas tão diferentes como 740-700 a.C. ou 537-520 a.C., para já não falar, entre outras, da conhecida Profecia de Carlos Magno (reutilizada e forjada durante séculos tal como a Sibila Tiburtina) que data do século XIV.

Este tipo de dissimulação visava uma transferência de valor e tinha como objectivo específico sedimentar uma vontade e sobretudo consolidar a autenticidade – e a transcendência – de uma ficção. Ao fim e ao cabo, a pseudonímia tipo Vaticinium ex eventum reflectia uma realidade nua e crua: o facto de uma dada ficcionalidade nunca se bastar a si própria e daí a necessidade de ter que a sustentar, que a provar, que a referenciar. Curiosamente, os realismos vivem também deste reducionismo que os obriga a legitimar o que dizem no fluxo do vivido.

No mundo moderno, a ficção só se começou a bastar a si própria, como um jogo autónomo não literal, quando o autor deixou de ser encarado como a fonte de todas as coisas. Com efeito, a hermenêutica romântica reduzia a interpretação ao simples reconhecimento das intenções de um dado autor (considerado do ponto de vista dos seus destinatários na situação original e histórica do discurso). Esta espécie de quase biografismo passou depois a ser entendida como uma variante da compreensão (Schleiermacher, Dilthey, etc.), acabando por centrar-se na expressão e na experiência vividas, sem qualquer necessidade de referência a um autor físico (noções das últimas décadas do século XX, como a “fusão de horizonte” – H. Jauss – ou a “apropriação” – P. Ricoeur –, derivam deste turn e deixaram de visar fosse o fosse acerca da intencionalidade de outrem, já que o texto passava a bastar-se a si mesmo).

A autonomia do texto face ao autor e às transcendências que ele suscita (forjadas ou não) é algo recente. De início, entre Deus e o profeta havia uma voz, depois um anjo, depois ainda uma exegese que se passou a repetir. Na literatura, entre o escritor e o público houve primeiro uma espécie de deus (o “  génio” de Kant), depois uma figura e uma biografia e, por fim, um pobre mortal a correr atrás da/os sua/eus personagens e de outros impactos da sua literatura.

Luís Carmelo