Sento-me com o papel em branco no tampo da mesa. Em repouso. É um tema gasto. Mas ainda assim tento. O papel pode representar exactamente o quê? A ausência de um mundo? A presença dos fantasmas? As letras – cuja conhecida metáfora pessoana não usarei aqui – não são apenas signos. Em rotação, claro. Penso nisto enquanto espero. Projecto imagens antigas à procura do tema e, obviamente, que o tema é exctamente isto sobre que escrevo no exacto momento em que o leitor lê o que escrevo (a repetição do advérbio «exactamente» é de propósito. Tem o efeito de uma respiração sincopada). Penso, por exemplo, no ano de 1993. Isto sem qualquer saramaguiana ressonância. Eu nem sequer conhecia o livro de poesia, híbrido livro, diga-se, em 1993. Do que me lembro é da origem da imagem. Do arquétipo. Era um andar permanente na cidade doente. Uma espécie de toada marítima dentro do sangue. Fluxos e refluxos de palavras novas («ódio», «amor», «solidão», «espera», «desejo», «velocidade», «eterno», «sangue», «paixão») naquele ano da minha revelação a mim próprio. Creio que a minha escrita nasceu de uma perda soberana e absoluta. Não foi uma perda total. Reconstruí, em certa medida, essa perda por meio da edificação de palavras. Há sempre fantasmas, na verdade. Seria Verão. Várias vezes regressei a esse labirinto corpóreo da poesia. A perda original foi a sensação terrível da inutilidade de tudo. Só a poesia podia restaurar uma genesíaca esperança. O peso das palavras de que fala Carlos de Oliveira. Rimbaud não me ajudou nada. E o verso de Mallarmé, sobre o eterno recomeçar do tempo, eis o que fabricou em mim esse movimento da escrita: fluxo verbal, refluxo da crença. E de cada vez que, hoje, recomeço a escrita sei que mergulharei mais fundo na certeza palpável do signo: perdida a capacidade simbólica – religatione – para ver o mundo, que nos resta (que me resta), senão encenar para sempre a impossibilidade possível de o poema ser o mundo que nos falta? O papel já não está, decerto, em branco. Também não é muito o que tem, o que diz. O peso das palavras existe: mas hoje é de uma força centrípeta que falo. Não sei se podemos falar em explosões de luz de cada vez que o signo cintila: é talvez uma outra operação – a perseguição dos arquétipos na noite escura do tempo?
António Carlos Cortez