Recordo o homem que fui sem saber de onde vem a memória, sem reconhecer a sua autenticidade. A ténue possibilidade de ter sido esse homem apresenta-se mais reconfortante do que a realidade de quem sou agora. Digamos que o possível se converte no meu real. O possível é a verdade que desejo aprisionar como minha. Já que nada consigo reter nas mãos que deixaram de acompanhar a linguagem do cérebro. A mente recusa-se a aceitar as manchas e as rugas que traçam um rendilhado insólito na pele ressequida. Os olhos vêem os dedos desenhar movimentos, como se não seguissem a minha vontade. Como se não pertencessem ao resto do corpo.
Talvez esse homem tenha existido apenas na minha imaginação. Mesmo no tempo em que eu me conhecia. Mas não me perguntem que tempo foi esse. Decerto muito longínquo, soterrado nos confins do mundo. Lembro-me vagamente que costumava cogitar se o mundo tem um princípio e um fim. A incerteza do fim era o que me mantinha acordado, certas noites. Pensamentos que deixei de ter há muito. Só não consigo precisar quando. Muito ou pouco, tudo ou nada são hoje quantificações que perderam o interesse. Não sei o que me interessa. Há dias em que julgo interessar-me pela vida, outros em que julgo interessar-me pela morte. Mas neste instante, que poderá durar um milésimo de segundo ou uma eternidade, interesso-me por aquele homem que imagino tenha sido eu. Imaginar é o único jogo praticável. O único prazer.
Julieta Ferreira