Os escritores que dedicam as suas vidas a escrever para as crianças. Os escritores que percorrem um imaginário totalmente desconhecido , entretanto e aparentemente, tão próximo. Os escritores que já foram crianças. E cresceram. E continuam a querer desbravar um mundo ignorado, translúcido; um mundo a que, vulgarmente, poderemos chamar de “mágico” e que é feito de construção e de imaginação absolutamente enigmática. Um espaço que pertence apenas a um só. Um espaço de abrigo de gigantes – os adultos -, um apelo diário ao desconhecido, um transformar permanente de situações: as boas que se tornam más e as más que se tornam boas; um apelo em silêncio a qualquer palavra que mude a vida num momento. Apenas num momento.
Há um olhar muito inquietante do escritor de literatura infantil sobre o imenso planeta onde vivemos. Há o pressentir de visões de fantasmas longínquos, de cavernas, de homens animalescos; há as visitas aos sótãos e subterrâneos mais escondidos e indecifráveis das nossas primitivas e incendiárias memórias; há a grande escalada sempre em desequilíbrios nas volutas imprevistas dos nossos cérebros complexos.
A literatura infantil deve ser dos géneros mais difíceis. Porque escrever para crianças não é apenas desenhar aventuras complicadas e criar heróis, pequenos e grandes heróis. É isso e muito mais! É compreender, é entranhar-se profundamente num imaginário altamente complexo, é adivinhar as portas que se poderão abrir e as que nunca se abrirão; é deitar um olhar sincero, sem mágoas, sem intenção, de amor absolutamente incondicional pela criança em crescimento, pela sua inocente e desprotegida condição de ser crescente, de lua nova que um dia passará a lua cheia, cheia de luz!
Lembro-me, perfeitamente como se tivesse sido ontem, de muita angústia e do choro convulsivo que certas histórias infantis que eu ia lendo, me proporcionavam. Histórias classificadas como sendo clássicos para a infância.
Imagino que não seja possível poupar a delicadeza de um olhar infantil para certo texto. A condição de adulto desse escritor, de já conhecer e até ter experienciado certas situações bloqueará, certamente, o ato de poupar toda uma possível inquietação ao olhar de uma criança que começa a espreitar a leitura. É inevitável que não sucedam por exemplo, aventuras terríveis, descobertas impressionantes, até mesmo a morte. Então, como é que se poderia ou porque é que se deveria evitar a todo o custo essas sensações desagradáveis num espírito leitor tão novo? É impossível. Que espécie de história se escreveria senão se transportasse alguma realidade mesmo no reino da fantasia?
As personagens são sempre boas e más, horripilantes e belas, vaidosas e imperfeitas ou perfeitas – mas quando são perfeitas são inverosímeis. Algumas figuras, por exemplo, ou são fadas ou são bruxas, os são gigantes ou são anões deformados, ou são animais ferozes ou são cordeirinhos brancos; os ambientes ou são pobres ou são ricos, as crianças-personagens ou são felizes ou são muito infelizes, ou têm mães bondosas ou sinistras madrastas, ou comem doces ou passam fome; as casas onde vivem ou são barracas ou são palácios; os homens, ou são príncipes ou são ladrões; as mulheres ou são boas ou são pérfidas e traiçoeiras.
São estes o principais arquétipos da inteligência humana e sempre e sempre a luta entre o bem e o mal.
E, para não alongar mais este assunto que daria para anos e anos de variadas abordagens, termino com uma quase certeza: é a infância a região mais misteriosa e brilhante do homem, no seu princípio. É a infância a condutora inquietante das nossas vidas. Toda a literatura infantil, seja a mais clássica ou a mais atual, é bem vinda e inequívoca e absolutamente necessária.
VIVA A LITERATURA INFANTIL !
Cristina Carvalho
Crónica de Abril 2012