O porão

Agora penso que este porão se parece com aquele outro, remoto, do palácio

episcopal de Luz, onde quiseram me fazer padre. Não é tão amplo, mas é mais

alto e entra uma luz coada que lá não havia. Recordo: tão logo morreu o velho

bispo, nonagenário, o bispo novo, quadragenário, autorizou que saqueássemos

o misterioso aposento onde o falecido, quando vivo, guardava suas tralhas.

Como um bando de hunos entramos e rompemos todos os ferrolhos.

Alguns já estavam abertos e apodrecidos pelo trabalho da oxidação. Cenário

de campo de batalha: baús e caixotes escancarados e repletos de voluminhos

devocionais, mas também de empoeiradas coleções de revistas já extintas,

como a picante Careta ou a plácida Flama, editada em Lisboa. Aquelas

velharias, levadas para nossos armários, passaram a iluminar nossas noites.

Havia também surrados almanaques ilustrados do começo do século,

digo o 20, trazendo os primeiros poemas de Olegário Mariano e fotos de

multidões na Praça Paris, tendo ao fundo a pedra do Pão de Açúcar, tão

imperscrutável quanto hoje. O fato de que aquelas compactas multidões

estivessem já sob sete palmos, separadas de seu mar de chapéus e bengalas,

causava-me vertigens. Pareciam tão animados e sequiosos de vida, esses

senhores paralisados em 1900, que custava acreditar que fossem agora

monturos de ossos debaixo da terra. Gerações inteiras banidas da superfície

planetária. Outras multidões tinham tomado o seu lugar e também já haviam

partido.

Depois disso nunca mais pude ver uma multidão reunida num comício

ou num estádio qualquer sem pensar no seu destino coletivo, que é o

grupamento dos destinos individuais. O espetáculo das multidões se tornou

para mim, desde então, patético. Braços e pernas movendo-se com a confiança

que o presente confere, bocas abrindo-se para vociferar, comer ou rir, como se

o instante durasse para sempre e se perpetuasse no plano do eterno,

embalsamado pela realidade bruta. Pensar nisso ajudava a atenuar as paixões e

a manter certa indiferença pelo burburinho.

À rápida dissolução do tempo histórico (porque o tempo individual, este

é subjetivo) corresponde a permanência da geografia, dos rios e mares, dos

maciços de pedra e dos astros no cosmo. Claro que nem mesmo isso é para

sempre, mas impressiona pensar que a Lua de nossas noites claras é a mesma

que um dia foi vista pelos faraós, pelos fenícios e por gente como Copérnico,

Galileu, Gutenberg, Napoleão e Freud; Lua que, aliás, iluminou os caminhos

de Cristo e Buda. Sob essa luz, que é apenas uma refração dos raios solares,

os fios do tempo se juntam para aproximar entre si as gerações, da última à

primeira, todas unidas pela experiência de terem visto a mesma Lua no

mesmo Céu.

E os espelhos? As pessoas não se dão conta de que, dentre os calhaus

domésticos que as gerações preservam e passam adiante, os espelhos deviam

vir em primeiro lugar. São eles que melhor testemunham a passagem do

tempo nos rostos vincados, mas não apenas isso: seu valor está sobretudo nas

imagens dissipadas. Mirar-se num espelho que refletiu os rostos de nossos

antepassados pode ser uma experiência mágica. Se os espelhos pudessem reter

suas antigas imagens refletidas, devolvendo-lhes a alma dos movimentos, que

rumorejo humano não sairia dessas relíquias emolduradas pelo passado, que

turbilhão de vidas canceladas, que névoa de sonhos esfumados.

Em certa época, pensando em tais coisas, pareceu-me que tudo era

inútil e que dava no mesmo entrar à direita ou sair à esquerda. Tornei-me

niilista. Depois fui seduzido pela sensação de que, sendo o mundo

inexplicável porém às vezes intensamente belo, tudo nele pertence à categoria

do fantástico. Pensamento salvador! Convinha não deixar que se gastasse no

atrito com o cotidiano. Atrás de tudo estava o tempo, abstrato e rude, sempre o

tempo com seus baús e ferrolhos oxidados. Durante anos conservei aquelas

antigas revistas, sempre na esperança de que um dia elas me revelassem a

chave do enigma que eu buscava decifrar. Mas isso nunca chegou a acontecer.

Tal chave, suspeito, levou-a no bolso aquele bispo nonagenário, que em seus

delírios falava com Deus e discutia com o Diabo.

 

Eustáquio Gomes

 

Eustáquio Gomes, jornalista, é autor dos romances A febre amorosa e Jonas

Blau, entre vários outros. Em 2007 publicou Viagem ao Centro do Dia – um

Diário.