Café às cores | Cristina Carvalho

Desde que se democratizou o consumo do cafezinho nas nossas próprias casas, quem não tiver uma maquineta de tirar bicas, daquelas que engolem cápsulas de várias cores – cada cor seu paladar como os “rajás fresquinhos” – não tem nada! Você pode não ter mais nada, mas uma maquineta de tirar cafés, tem, com toda a certeza. Tem-na na sala, naquela mesita baixa ao pé da televisão, tem-na na cozinha ao lado do micro-ondas, até a tem no vestíbulo da entrada se já não tiver cabimento em mais lado nenhum. Tem-na.
Começa porque a máquina é bastante cara. Mas isso não tem, realmente, grande importância. Faz parte daquelas aquisições que o vão fazer sobressair no seu estado social, mais não seja porque é yesssss! Máquina de café mais o estojozinho ou sem estojo, uma coleção de cápsulas brilhantes e eficazes. Um problema: que fazer com as cápsulas usadas? Fora? Lixo? E o ambiente… Mas já inventaram um capsulão, a verdade é essa! E desde que o capsulão apareceu no bairro, é tudo muito melhor, muito mais limpo. Mais o preço das cápsulas e a estafa, a demora inacreditável, a espera submissa na asséptica loja onde ali e só ali – a não ser que um cristão tenha internet e faça a encomenda – se pode comprar o aveludado cafezinho.
Tudo isto se desculpa porque oferecer a um amigo, uma visita ou o próprio tomar este aromático líquido, é compensador.
Não é de todo desagradável estar em pé numa daquelas lojas lindas, educadas tempos e tempos sem fim! Esperar longos minutos com uma senha na mão e observar demoradamente os empregados tão aromáticos como o próprio café e parece que quase não falam, parece que os seus pezinhos deslizam sobre nuvens de algodão doce quando saem por detrás do balcão e gentilmente nos estendem os braços e nos entregam o saco com o que acabámos de comprar. Atendimento altamente! Nada tem já a ver com aquelas lojas de café que existiam no Martim Moniz ou na Praça da Figueira onde homens enormes, gordíssimos, de batas brancas manchadas com riscos e sombras acastanhadas que eram a mancha desenhadas por vestígios de pó de café, suportavam o peso duma existência inteira dedicada à delicada composição dos lotes de café. E uma pessoa saía com um pacote de papel pardo na mão, atado por um cordel, nas extremidades.
Hoje, nestas novas lojas, há ar condicionado e um balcão para provas de café e altas colunas coloridas onde estão inequivocamente arrumadas milhares e milhares de cápsulas que apresentam as tais cores variadas conforme o nome e a proveniência e há esperas e sorrisos e desejos e vinganças e encontros e desencontros, tudo num certo espaçar de tempo com determinada ideia: eu não sou qualquer um. Eu gasto deste café. E mesmo que se esteja ali vinte, vinte e cinco, trinta minutos ou mais à espera de ser atendido, não existe um esgar, um azedume, qualquer tom de impaciência nessa espera desgastada. Há uma sobranceria qualquer, uma ideia, uma máscara, um enfeitar, um regozijo, satisfação, enlevo, um gozo premeditado, um prazer que se imagina por se receber mão na mão, olhos nos olhos, o impulso quase triste de se caminhar na direção da porta de saída ostentando um saquito ufano recheado de caixinhas multicores cheias de pó de café comprimido e burguesote.
E finalmente, quem sabe, ó céus! ó enlevo máximo! ó sublime visão de categoria, de grande categoria: à nossa espera, ali encostado rente ao passeio a fervilhar de gente cheia de saquitos de cápsulas, para cá e para lá, rua acima, rua abaixo, um automóvel cor de prata e lá dentro, óóóóó!!! John Malcovitch empoado, sentado, de sorriso cândido, John com asas, John sem asas, John nas nuvens mais o seu amigo, o Clooney, aquele rapaz que tresanda a café do bom, do requintado, o George nas alturas a subir uma escadaria celeste, degraus de algodão, fato branco, luminoso, imaculado.
Ah se todos os Johns e todos os Malcovitch’s e todos os Georges e todos os Clooneys do mundo inteiro soubessem o sacrifício que um mortal passa para beber e ter acesso a uma só cápsula, uma só indestrutível cápsula de café…

Cristina Carvalho
Junho 2011