69º episódio – O BOM LADRÃO – Folhetim em setenta e cinco episódios

Capítulo XI: Blocos vazios de infância

Os dias escorrem. Insônia. Dias sem dormir. Escrever para quem? Não haverá leitor para um texto que não tem vínculos cartográficos, biográficos e históricos. Nem serve de autoajuda… Talvez para desencadear de vez um suicídio. Não ria de mim… Sente-se aqui ao meu lado, escrevamos a quatro mãos. Isto, assim… Vamos filho, coma a sopa, tem o rosto cansado, não sei quanto tempo conseguirá manter essa vida dupla, sem dormir direito, escrevendo mundos em folhas em branco, que nem sabe se algum dia terá leitor, é Clara sentada na mesa, nunca a chamei de mãe, talvez quisesse ter dito, mas nunca, agora posso colocá-la diante de mim dizendo, sempre com a mão direita dentro do bolso do avental, como faz as vendedoras portuguesas nas feiras-livres, mexendo com dinheiro, mas naquele bolso não há nada, talvez os sonhos não realizados, então, ela presente, posso me justificar, não me importam ter leitores, ou talvez importasse sim, agora não mais, o momento é de resgate, das cores, dos vínculos importantes, de tocar os cabelos negros e ondulados que caem sobre seu ombro, sem medo do pai que nunca mais voltou a casa, nunca sentiu ser dele a família, vamos dizendo com os pensamentos, juntos, Não se preocupe, fique descansada, você foi muito importante, digo o que nunca consegui dizer, ela me sorri, levanta-se, permanece um tempo com os olhos enormes a nos observar, nós como a criança flagrada pela mãe no varal de roupas, rosto quente, deve estar avermelhado, passa a mão em nossa cabeça e segue na direção do escritório, vamos atrás, ajeita-se na poltrona de couro de carneiro, a superfície craquelê, tempo marcando fronteiras, como faz com as paredes, a pele, ela olha contemplativa para os dedos do filho em desassossego, como se conversassem através dos sons emitidos ao teclar, olhamos para ela, ele também sou eu, tento dizer, mas ela vê apenas um, apesar de haver esse outro de mim, e ela diz para Você não vai comer? Olhamos para ela sorrindo, continuamos a teclar Já estivemos na cozinha, ainda há pouco, o caldo verde com ovo, lembra-se? Ela olha na nossa direção, volta-se para velha Remington Rand, percebemos que está confusa, deixa escapar palavras pela boca, Surpresos! De que doença falaria? Voltamos a teclar, agora eu e o outro somos um, ela nos pegou de surpresa, de que doença falaria? Não perguntamos… A poltrona vazia, alguém chega à porta, apenas esboço, de outro tempo além deste, tenta nos dizer algo, mas não nos permitimos ouvir, precisamos de sossego para escrever, evitar o mundo ao redor, Olá, vai ficar aí até quando? Carol! É de minha mãe a voz aguda de surpresa pela chegada dessa mulher de nome Carol que o outro de mim beija na boca, eu dizendo que teria de terminar o capítulo, depois veria o que fazer, mas ela vindo até nós, a nos abraçar por trás, beija nosso pescoço, Clara sem jeito pedindo licença e indo para a cozinha, só nós no escritório, Carol nos levando dali, entramos no quarto, avisa-nos que a mãe doente, muito doente, tem pouco tempo de vida, nos abraçamos forte, choro, e as lágrimas deixam-nos excitados, Carol percebe a ereção, começa a nos acariciar, ficamos na cama bolinando, até gozarmos, nunca entendi a excitação toda vez que diante da morte, agora o outro de mim ajeitando-se em minhas linhas, não entendo bem a superposição, mas sinto alguma mudança dentro, sentado diante da velha Remington Rand e o escritório vazio, o ruído da carroça e do chicote, o som ruidoso do movimento da roda, sempre no mesmo ponto, daria para pontuar o tempo através do estridente, saímos correndo, não sabemos se alguém perguntou aonde iríamos, mas a sineta, a porta aberta, a rua… Colocaremos tudo em seu devido lugar, viveremos juntos tudo isso, nunca mais em cantos diferentes, muitas vezes, agora a impetuosidade e o medo habitam um mesmo corpo, a rua de terra, é seu Manoel subindo com a carroça, o burro velho e surrado, traz verduras, frutas e legumes, Clara sai na porta, sem o avental, deixou-o dependurado no prego na cozinha, tem as mãos livres, seu Manoel diz Eia! Eia!

 

(continua)

Carlos Pessoa Rosa

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