53º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Necessito do outro de mim, a impossibilidade da literatura me destrói, preciso do excesso, do caminhar no limite, nas fronteiras, o mundo eu já perdi, estou pronto novamente para dizer, como ela, na primeira pessoa, devo suportar um pouco mais, até a última visita, enquanto leio o diário, sedimento algo de quem fui, através de resenha materna, ela não mais aqui, não sei o motivo, deve ter registrado no diário, mas agora não mais, a velha Remington Rand me assediando, melhor sair, comer alguma coisa, morrer mais uma noite, amanhã não haverá ninguém a me incomodar logo cedo, vontade de colocar um aviso na porta, como dos hotéis, NÃO INCOMODE, mas na rua estimulará ação de vândalos, nem no hospício há tantas variedades de loucura, tantas tatuagens no couro, tantos registros estranhos nas paredes, tantas desavenças sem motivo, tanta desigualdade, tantas mortes violentas, tantas vísceras ruidosas de fome, tantos crentes, tantos incrédulos, tantos mortos vivos… O mesmo nas ruas, cada vez mais. A única bala perdida dentro de um hospício não são as metálicas, mas as colocadas na boca dos internos pelos enfermeiros, aviadas pelos médicos, pelos doutores da vida e da morte. Amélia trocou os lençóis, o quarto está perfumado, vou pedir que na minha morte perfumem o caixão desse modo, durmo sem travesseiro, acho que sempre foi assim, que livro seria esse que foi aceito para publicação? André criticou o que escrevo… Ninguém suporta. Os psiquiatras ficaram horrorizados com um texto escrito com a unha na parede de minha cela, aquilo não era um quarto, custou-me um choque a mais, o aprisionamento do outro de mim, não conseguiria escrever nem mesmo um diário, não tenho qualquer interesse em atuar no tempo comum, se o faço é pelo resultado do tratamento, repetir o mesmo, sempre e do mesmo jeito, reforçar o modelo, mas só com os remédios meu mundo assim, em branco e preto, eu sem gozo, sem prazer, sem desejo… Mentira! Desejo existe, só estou usando a tática do perdedor, o tempo resolverá, é preciso perder o mundo e viver o inferno da impossibilidade do dizer, ser escritor é isso, prostituir as palavras, transmitir todas as pragas possíveis, isso não é possível sem o outro, escritura necessita sempre de dois, como no sonho, há sempre um fora de cena…

A luz zebrando o assoalho… Que horas seriam? Sensação de ter dormido muito. É possível que várias noites tenham se passado, os dias sem criatividade, sempre os mesmos, circular, repetitivo, construído pelo mesmo, as palavras frágeis e sem poder criativo, ninguém suporta o silêncio, como se fosse o oposto da palavra, mas é no silêncio que a escrita helicoidal, não há totalidade a não ser na loucura coletiva, tenho dormindo muito todas as noites, efeito dos remédios, a fresta na parede, dois olhos me espiam… Saco! Não tomei os medicamentos ontem à noite, melhor me levantar, dobrar a dose agora cedo, na parede a data atual, não acredito, amanhã será o dia da visita da assistente social, a consulta com o psiquiatra ocorreu faz uma semana, ele elogiou minha evolução clínica, disse assim mesmo, clichê, o que mais ouço das pessoas são respostas prontas, André praticamente esqueceu-se de mim, ouço o som da televisão na casa dele, não é incomum arrumar alguma encrenca com vizinhos e transeuntes, estou feliz por estar fora de seu foco… Amélia também não se preocupa mais comigo, vive elogiando meu comportamento, minha melhora, percebo nela um interesse de se misturar com minha normalidade, até que gostaria, mas não quero nada com essa gente que pensa me ajudar e me mata lentamente, que não percebe o próprio suicídio imposto pela rotina. Hoje é dia de ir ao banco receber a aposentadoria, antes tomarei um bom café com leite… Na cozinha vaga lembrança da mulher sentada na cadeira, do gato aguardando a ração, mas nada sobre Carol. Do outro lado da parede, nada se houve, está dormindo ou morreu… Besteira! Gente ruim não morre nunca! A pia está carregada de louça suja, Amélia vem amanhã, a assistente social vem à tarde. Melhor sair, tomar o café na padaria, mas antes mais uma lida no diário:

Volto do médico. Não sei como anunciar o problema a Samael. O que não se pode dizer… Escrever é possível. O problema não é a morte, mas o modo, não gostaria de dar trabalho aos dois, ainda mais agora que estão tão bem. Para não fugir à verdade, estou até tranquila, se é para morrer que seja no momento em que estamos mais felizes, quando não há mais planejamentos, quando vivemos a plenitude, mesmo que temporariamente, mas não sei como dar a notícia, talvez melhor não dizer nada, caso venha a perceber… O doutor falou em pouco mais de um ano. Ainda bem Carol em casa. Não ficará sozinho.

 

 (continua)