Escrever um ensaio é caminhar na tensão entre teorias: entre caminhos já soletrados, entre clareiras ainda por dizer. Escrever um ensaio é reinventar as ordens com que a realidade disputa o que a diz. A lenda designou por ‘Ovo de Colombo’ a disposição – ou a possibilidade – de nomear aquilo que os pontos cardeais do olhar humano, por intuição, já conheceriam. Assim sucedeu com os pintores do paleolítico, quando empurravam a sua frágil tinta por veios aparentemente aleatórios, mas, ao fim e ao cabo, seguindo sempre as falhas, as fendas e as distensões geológicas já inscritas nas rochas das grutas.
Pensar é dialogar com os traços que desenham a obscuridade do cenário. Pensar é decantar o que, um dia, coube em palavras como o ‘tempo’, a ‘natureza’ ou na irrealidade que nos terá levado a supor que era possível fixar duradouramente ‘categorias’ e ‘mediações’. Pensar é rasgar um véu onde se deslocam esboços de intenção, estruturas pré-formadas, fracturas e voragens sem definição própria.
A objectividade é uma acumular de dados que se realiza porque nos reconhecemos, ao pensar, enquanto sujeitos: como agentes que representam, agem e se redescobrem no objecto desse acto e, também, dessa prévia representação. Escrever um ensaio é lutar pela clarificação das diferentes objectividades com que nos vamos confrontando no decurso do fazer e do acontecer. Escrever um ensaio é ordenar o caos a partir do qual o saber diz as suas relações, implicações, pactos impensados, inferências e inevitáveis juízos (os padrões neurais de Damásio, ou os actantes posicionais – Petitot – da teoria das catástrofes ilustram o imprevisível e o quase ilegível que chegam a preencher o mundo interior da pesquisa).
Pensar é porventura tentar objectivar (pôr em cena, apresentar – a Darstellung de Kant, o Bilt de Wittgenstein) essa atmosfera dispersa, do mesmo modo que, com a compulsão silenciosa de uma fotografia, se objectivam as intrincadas relações entre realidades e ilusões, ligando entre si aqueles segredos ou aparentes mistérios que a parecem dominar. Pensar é saltar pela montanha. Escrever um ensaio é descobrir o relevo e a cartografia incerta que a diz.
Há sempre um momento em que agir é já o próprio esquecimento em vez do acto que se esperaria: o personagem que se cala diante do choque, do abismo, do vórtice. A nuvem de pedra. A ‘poiesis’ reaparece sempre no local onde o pensamento calcorreia entre pó e visões. E assim nos cumprimos e chegamos a ser, talvez para cuidar da matéria do esquecimento (e da culpa). E esse caminho que leva, a dada altura, a ter que fazer e a ter que sobreviver é, provavelmente, o que faz do homem um ser homem.
Pensar e literatura: um dilema afinal com algumas saídas. Uma tensão estriada que cresce, porque a palavra que pensa resiste a entrar no jogo que faz a linguagem ser estética. Um alívio em suspenso que irrompe, porque a palavra que sabe conotar resiste à segmentação que permitiria concluir ou encerrar. Nada que não partilhe o mesmo encanto: superar, traduzir o que não seria traduzível e, enfim, inscrever para além da ordem previsível do que poderia ser dito. Há um aceno de surpresa nas etapas de um pensamento, tal como existe um aceno se surpresa na pulsão que permite à palavra literária vibrar. Um mesmo salto, dois devires.
Luís Carmelo