Crise, literatura e abismos

 

 

1

Na sua origem, os “bárbaros” eram todos aqueles que não eram (ou que não falavam) como nós. A própria onomatopeia cartografa já o outro lado de lá da fronteira. Os estóicos aprenderam, no seu tempo, que existe uma grande instabilidade e uma razoável elasticidade entre o uso das nossas linguagens e aquilo que queremos exprimir, precisamente porque habitavam nas colónias gregas, local variado e difuso onde as línguas e os hábitos mais diferenciados se misturavam. Eles viam diante dos seus olhos os bárbaros e respiravam com eles a sua filosofia e o modo como esta explicava a vida e a significação. E apesar de tudo, a terra rodava. E havia o culto de qualquer coisa era, ou devera ser, comum a todos.

2

Existe uma certa redundância, quando Wittgenstein afirma que o sentido é aquilo que a explicação do sentido explica. Ou seja, o sentido só se refere àquilo que a partir dele se consegue explicar. Em certos casos é muito mais o que não se consegue explicar do que o que se pode explicar. Há épocas que acolhem esse tipo de casos, dir-se-ia mudos, do mesmo modo que um príncipe recebe a sua desejada princesa. Uma época de terrorismo que opõe uma compreensão primeira do mundo de tipo religioso a uma compreensão primeira do mundo de tipo não religioso é uma época que tende, naturalmente, a coabitar com alguma falta de sentido.
Apesar de tudo a terra roda. E o culto – o sentido do culto – deixou de ser uma respiração comum. A Europa sabe disso, pois essa é uma das máscaras da sua profunda crise (que não é apenas um episódio dos mercados).

3

Diz Fiona no início de Música do Acaso: “Estamos na América, Nashe, A casa da maldita liberdade”. Duas páginas depois, comena-se através da voz do narrador: “O dinheiro era responsável pela (sua) liberdade”. E épor causa disso que o destino de Nashe, o protagonista de Música do Acaso, também de Paul Auster, acaba por se fundir com o jogo, com o dinheiro, com o sacrifício e com uma fixação na prática da imolação. Em Leviathan, a prefiguradora saga (terrorista) da estátuas da liberdade e a queda física de Sachs, enquanto pontos de viragem da narrativa, mantêm e sustentam o princípio de uma fixação que é anterior à fruição da liberdade. De algum modo, em Paul Auster, encontramos materializado aquilo que Vattimo designou por “liberdade problemática”. Quer isto dizer que a liberdade, tal como é tratada por Paul Auster, se transforma quase sempre em algo insuportável, parte da curva de um labirinto maior onde a interpretação e o sentido acabam por esgotar-se.

Será a literatura a glosar o real? Ou será o real a reflectir-se, como poucas vezes terá acontecido, no coração da literatura?

Luís Carmelo
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P.S.: O sítio PNETliteratura cumpre, no próximo dia 8 de Setembro, o seu quarto aniversário. Regozijo-me profundamente com o facto e aproveito a circunstância para daqui enviar os meus sinceros parabéns ao administrador da rede PNET e fundador do projecto, Eng. Vítor Coelho da Silva, e a todos os cronistas e colaboradores que têm sido, afinal, os construtores reais deste edifício consagrado a todos os oceanos da língua literária em Português.