As topografias de Poe

O espaço representado nas ficcionalidades de Poe tem algo do vislumbre da infância fotográfica. Ora leia-se: “A cidade estava em grande parte despovoada e, nos bairros horríveis vizinhos ao Tamisa, no meio de um desses becos negros, estreitos e imundos, onde o demónio da peste tinha fixado a sua residência, passeavam à vontade o espanto, o terror e a superstição…” (RP: 11). A passagem surge como que a revelar um quotidiano sem contexto, imerso em si mesmo e à procura de uma regra que permitisse entender, pelo menos, um horizonte.

Por vezes, o detalhe, o microcosmos e o fascínio pelas texturas mais imediatas contracenam com o irremediável: “O ar estava frio e enevoado. As pedras arrancadas da calçada jaziam numa desordem medonha por entre a relva alta e vigorosa…” (RP:12). Mas é a percepção – da fatalidade – que acaba sempre por comandar o relato e emprestar-lhe sentido: “E toda aquela turba ia com uma actividade ruidosa e desordenada cujas discordâncias mortificavam o ouvido e produziam nos olhos uma sensação dolorosa” (HC:69). Poe diagnostica o visível e pressupõe-o como um possível, à solta, que parece ter saído de uma ordem que antes vingara durante séculos. É esta descoberta implícita, mas tão óbvia, que melhor exemplifica a inscrição literária de Poe.

Ao fim e ao cado, Poe entendeu muito bem, no seu tempo, que as mudanças correspondem sempre a uma inquietação muito difícil de fixar. O que as caracteriza é o desfasamento entre o que é tangível aos olhos de quem analisa ou descreve e a mais profunda falta de enquadramento para esse espectáculo corrente. A semente do niilismo moderno – e do sofrimento sem causa – terá aqui a sua génese. É um facto que a disforia toma conta do mundo no alvor moderno e urbano, nas periferias industriais emergentes e nestas vielas taciturnos que Poe tão bem traça e relata. A nova inscrição dos espaços vai desencadeando um novo hiper-realismo que torna as liturgias, os milagres, os santos e outras figuras da tradição teológica em miragens sem grande espaço de fruição. As utopias da época ditam visões autónomas e livres e ancoram em aparelhamentos que retiram, por sua vez, espaço às fantasmagorias dominantes ligadas à lanterna mágica. A fotografia – e algumas décadas mais tarde – o cinematógrafo são os exemplos mais copiosos de um novo processamento da realidade em que o dia-a-dia impiedoso e cruel se torna personagem principal.

Contudo, no campo especificamente literário, Poe, além de fotógrafo – que o foi de modo prodigioso –, não evitou a chamada ‘carga da época’. O encantamento gótico-romântico persistia em ver o que o mundo não deixaria ver. Mas o que a literatura dá a ver raramente se confunde com o desígnio tosco do ici-bas. A literatura herda um mundo que adora encenação, na boa tradição danielítica.

O mais fascinante, no caso de Poe, é que na sua obra convivem ambos os olhares: o desassombrado e fotográfico, mas também o codificado e encenado. Eis um exemplo deste último: “(…) restaurei parcialmente uma abadia (…) numa das regiões mais remotas e mais isoladas da bela Inglaterra. A lúgubre e solitária imponência do edifício, o aspecto quase selvagem da propriedade, as muitas melancólicas e queridas recordações de que não me conseguia libertar tinham muito em comum com o sentimento de extremo abandono (…)” (LI:32,33). E ainda outro exemplo, este carregado de adornos e simulacros: “Magnífica de ouro e púrpura, desceu sobre nós (…) até que por fim os seus rebordos pousaram nos cumes das montanhas, o seu aspecto sombrio agora convertido em magnificência, encerrando-nos (…) numa prisão esplendorosamente, gloriosamente, mágica” (EL:52). Ou ainda, para finalizar: “E sempre que o visitante mudava de posição, via-se cercado por uma infinda série de formas sinistras como as que povoavam as superstições normandas ou os sonos pesados de culpa dos monges. (…) (O) vento por detrás das tapeçarias acentuava o efeito fantasmagórico e proporcionava ao conjunto uma animação medonha e inquietante” (LI:36).

Poe: uma literatura de fusão, é certo. Mas também uma literatura do fascínio. Quer pelo espaço que brota como uma explosão luminosa e realista, quer pelo espaço que se insinua como um locus críptico e enclausurado.