A literatura e os níveis da ilusão

Tenho-me muitas vezes confrontado, em sessões e debates ao longo dos anos, com certas perguntas que geralmente remetem para o sorriso silencioso, para o tabu ou até para o irrespondível. Não, não se trata da clássica “Por que escreve?”; trata-se de uma outra formulação que surge também amiúde: “O que distingue um escritor de um não escritor?” (por outras palavras: o que distingue um romancista de alguém que ‘apenas’ escreve romances?). É óbvio que separar generalidades como ‘arte’ e ‘não arte’ é algo relativamente fácil, pois remete para um domínio histórico. Uma noção como a arte adquiriu o sentido que lhe atribuímos ainda hoje numa determinada altura e o percurso dessa noção é, enquanto generalidade, facilmente localizável. Mas nem sempre é fácil, de facto, enquadrar a questão mais pessoal: “O que faz alguém que escreve não coincidir com alguém que pratica a arte da escrita?”.

Há realmente perguntas que se repetem, porque são sintomas de coisas bem mais profundas. Vejamos: a escrita é, hoje em dia, um acto generalizado. O mundo moderno fez da escrita uma prática dessacralizada e sujeita a regras estritas, conforme as áreas de actividade. A arte da escrita, em concreto, surgiu, desde os românticos, como criação pessoal que transcenderia o domínio da simples experiência. E que se afirmaria com autonomia radical e com valia e vida próprias. No fundo, é como se a arte da escrita tivesse ousado recuperar, ainda que subliminarmente, a velha oposição ‘escrita-Escritura’, apropriando-se do segundo pólo como valor intrínseco e espiritual, e aproveitando a tradição do primeiro pólo como motor e técnica.

Este pacto entre um instrumento que todos podem exercitar e uma aura que todos percepcionam (mas a que nem todos dão forma) está, efectivamente, na base do paradoxo que percorre a realidade da escrita nos últimos dois séculos e meio. E é por isso que a questão – “O que distingue um escritor de um não escritor? – é recorrente e mesmo pertinente. Ela é, ao fim e ao cabo, sintoma de um entendimento que tende a aferir e a localizar onde acaba a parte instrumental e material da língua e se inicia a parte da sua herança espiritual (veículo profético, verbo inicial, ou, já no mundo moderno, fruto e revelação da ‘poiesis’).

Quando as pessoas colocam em sessões e debates este tipo de questões, apenas pretendem perceber qual é o papel da “Escritura” no imaginário actual de um escritor. Como se um escritor fosse uma espécie de sacerdote do imaginário e esse facto tivesse que ser explicado com uma dada racionalidade. Ao fim e ao cabo, a própria pergunta pressupõe já uma separação que ela mesma não desejaria aceitar. E essa separação é a que obviamente distingue aquele texto que transcende o registo do que terá sido e acontecido (o que acontece ao lerem-se passagens de Borges, de Pessoa ou de João Cabral de Melo Neto) e o que apenas acompanha e mimetiza esse registo (facto que se verifica em 90% dos milhares e milhares de textos que o ‘cash flow’ editorial publica em cada ano que passa).

Há anos, quando morava na Holanda, lembro-me de ouvir um amigo sírio dizer que jamais o Alcorão podia ter sido escrito pelo homem. O curioso é que ele dava exemplos sobretudo retóricos, discursivos e alegórios para fazer de tal afirmação algo definitivo e irremissível. No Ocidente, o nível da ilusão saltou – do século XVIII para cá, da imagem de deus para a imagem da arte. A ideia da “Escritura”, como algo ‘incriado’ e superior, passou desde então a projectar-se na literatura e os próprios textos sagrados começaram a ser analisados – na academia e não só – como a mais pura literatura.

Luís Carmelo