O romance não se inicia em estado de clímax, como é evidente. Afinal, mais do que permitir ao leitor cair imerso e desamparado no vórtice da cena, Ernesto Sabato limita-se a dar voz ao protagonista para que anuncie o que é decisivo na narrativa: “Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou Maria Iribarne”. O jogo parece ficar todo à mostra, poderá pensar-se, mas não é isso que realmente acontece. Até porque um clímax coloca em jogo actos, factos e situações, enquanto a tensão criada pela declaração de Castel apenas gera um estado de alerta. Mas um alerta que cativa e que conduzirá o leitor a ter que virar a página. A mestria começa justamente aí.
O enredo abre-se depois do mesmo modo que se abre um desdobrável: no dia da inauguração do Salão da Primavera de Buenos Aires de 1946, uma mulher fica muito tempo parada diante de um quadro do próprio Castel. A figuração impunha, em primeiro plano, uma cena onde contracenavam mãe e filho, uma imagem levemente desfocada sobre o seu realismo momentâneo. Mas o que acaba por cativar Maria Iribarne – a anónima visitante do salão –, alheada das vozes circundantes e do solilóquio dos críticos, é um detalhe do quadro a que fica intensamente presa durante minutos e minutos. Como se um pormenor da pintura – era uma simples janela – pudesse isolar-se do mundo inteiro, tornando-se numa espécie de luz ao fundo do túnel de toda a criação, de toda a imaginação, de todos os textos.
Este facto viria a mudar a vida de Castel. A partir da timidez e silêncio em que se resguardava, seguiu obsessivamente o fascínio da mulher pelo detalhe do seu quadro. Vira-a ao longe no Salão durante minutos – uma eternidade –, até que Maria Iribarne abandonou a exposição: “Durante os meses que se seguiram, só pensei nela, na possibilidade de a voltar a ver. E de certo modo só a pintei a ela. Foi como se a pequena cena da janela começasse a crescer e a invadir toda a tela e toda a minha obra”. O ponto de partida de O Túnel de Sabato (1948) é tão simples quanto admirável. Uma mudança radical a partir de um aceno breve e aparentemente sem peso. Mas o suficiente para carburar uma trama intensa.
O relato tornar-se-á permeável às coincidências e a uma série de contingências algo inesperadas. O suficiente para que ambos se encontrem e para que o voyeurismo de Castel se torne doentio. Cada vez mais abismado. A atracção acabará por tornar-se fatal. Há cartas, telefonemas, idas de comboio à casa de campo de Maria Iribarne. E há sobretudo o ciúme e a conjectura fantasmática que farão da saga aventurosa uma tragédia à procura do seu sentido.
É evidente que de um grande ponto de partida nem sempre se deduz o que é esperado, sobretudo quando o leitor já sabe aquilo que o espera. Raramente as expectativas e o peso bruto dos factos pactuam. E a regra parece cumprir-se neste romance de Sabato: “Quando me entreguei, na esquadra, eram quase seis horas./ Através da janelita do meu calabouço, vi como nascia um novo dia, como um céu sem nuvens. Pensei que muitos homens e mulheres começariam a acordar e logo tomariam o pequeno-almoço e leriam o jornal e iriam ao emprego, ou dariam de comer aos filhos e ao gato, ou comentariam o filme da noite anterior/ Senti que uma caverna negra ia aumentando dentro do meu corpo”.
Mas o que interessará a potencialidade da narrativa e até o modo como o inimaginável se debruça sobre a enseada do imaginável? Afinal, a literatura mais não visa do que uma brecha. Um clarão capaz de tornar o olhar numa súbita visão. Ainda que muitíssimo breve. A janela de Maria Iribane teve efectivamente esse condão.