Noam Chomsky em conversa subversiva, sempre | por Vamberto Freitas in blog “Nas Duas Margens”

Numa sociedade democrática, na medida em que é uma sociedade democrática, o governo somos nós. São as nossas decisões. Mas o governo aqui é descrito como algo que está a atacar-nos, não como um instrumento para fazer o que decidirmos.

Noam Chomsky, Mudar o Mundo

Vamberto Freitas

Para mim, ler este recente livro de Noam Chomsky, Mudar o Mundo, que foi pulicado o ano passado nos Estados Unidos, e acaba de ser traduzido no nosso país, é como que sair à rua de uma casa fechada e infernal, respirar o ar fresco e sentir uma brisa de vida que promete levar consigo toda a nossa apatia e amordaçamento generalizado de corpo e alma. Um neo-fascismo, que a maioria de nós insiste em chamar de neo-liberalismo, subvertendo assim toda a linguagem para corromper em absoluto a realidade e o pensamento livre dos cidadãos, como nos avisou George Orwell, é a nova ideologia que tomou conta de quase todas as sociedades do Ocidente, e não só. Franklin D. Roosevelt diria um dia, quando a sua América se encontrava no fundo de poço lamacento a princípio dos anos 30, que quando um governo está dependente de uma única instituição financeira privada será, ipso facto, um governo fascista ou fascizante. Bem sabia ele quem tinha provocado a queda do seu país, e quem lucrava com a miséria de um povo deprimido, em todos os sentidos, e reduzido à miséria dos famosos acampamentos dos desabrigados em todo o território (de que John Steinbeck daria conta no seu magistral As Vinhas da Ira), ou tremendo de frio em filas intermináveis para uma sopa dos pobres bem no coração de Nova Iorque e de quase todas as grandes cidades do seu país. Ler Noam Chomsky sobre as nossas sociedades e sobre outras abordadas nestas páginas em forma de uma longa entrevista com um seu ex-aluno e simpatizante de nome David Barsman, é sermos lembrados de que o que nos está a acontecer, a nós portugueses, de alguns anos a esta parte, estará, mais cedo ou mais tarde, a acontecer a quase todos os outros, pois o regresso descarado do projecto para uma nova escravatura é global, um mundo totalmente governadopor “investidores” anónimos e bancos de todo vampirescos, esquecendo as populações mais indefesas e sugando o que resta da vida dos que ainda conseguem produzir alguma coisa à pequena e média escala, ou, como último recurso, “vender” o seu trabalho a preço mínimo. Há um conforto perverso em ler Noam Chomsky: ninguém está só, todos enfrentam o mesmo mundo reformulado conforme os interesses de minorias poderosas, pelo que a resistência ou é internacional, ou nenhum país sairá do pântano que para si criou e lhe foi criada, a suposta “saída” só quando os novos poderes financeiros permitirem. Aliás, quando lemos Noam Chomsky sobre os EUA – o movimento norte-americano Occupy significa muito, e há esperanças que não baixe os braços nem tenha medo algum dos seus algozes de fato e gravata e de pasta na mão, ali lado em Wall Street — e os caminhos escolhidos pelos novos usurpadores (as urnas não justificam a mentira, ou certas ideologias disfarçadas pelo nova linguagem) da nossa vida política e económica nestes últimos anos, quase esquecemos que não estamos a ler sobre Portugal, ou sobre qualquer um dos países que já sucumbiram.

Mudar o Mundo (lembrando deliberadamente o conhecido dito de Karl Marx de que os filósofos se haviam limitado a interpretá-lo durante toda a história, mas era agora necessário agir) está organizado em oito capítulos, começando com “O novo imperialismo norte-americano” e terminando com “Aristocratas e democratas”. Nenhum leitor esquecerá que estamos perante um homem declaradamente da esquerda independente e não-sectária, alicerçado simultaneamente em leituras intermináveis tanto do passado como do presente, constantes visitas e experiências nos mais diversos países e regimes do mundo, e ninguém esquecerá que se trata de um dos mais distintos e consequentes linguistas do nosso tempo, que ainda hoje, com mais de 80 anos de idade, se mantém activo tanto nas salas de aula do prestigiado MIT (Massachusetts) como em constantes conferências de cariz político por todo o país e, uma vez mais, no estrangeiro. O seu entrevistado leva-o aqui a algumas páginas sobre o seu trabalho académico, mas o resto são as suas análises e reacções ao mundo contemporâneo, particularmente a partir de meados dos anos 60 e da guerra do Vietname. Fala de todos, americanos e outros, como se a sua vida estivesse dependente de qualquer decisão feita no mais recôndito lugarejo do mundo, se como a sua cidadania não tivesse passaporte ou fronteira. Se conhece muito bem a tradição judaica das suas origens, é para a subverter e falar de Israel tal como fala de qualquer país, pequeno e dependente da vontade dos grandes impérios do nosso tempo. Para Chomsky, a meu ver com toda a razão, deveremos falar, na maioria dos casos, em “protectorados” mais do que em “estados” soberanos. Se a queda do Muro de Berlim acabou com a guerra fria, a hegemonia de uns sobre todos os outros continua e aperta os laços ao pescoço de quase todos. O que se passa na Europa, para ele, não é novidade alguma, está dentro do caminho escolhido pelos novos donos da Terra, escondidos em linguagens perversas, corruptas e mentirosas. Chomsky, no entanto, nunca advoga outra acção que não a do diálogo, quando possível, e de denúncia quando necessária, as manifestações de rua essenciais à mensagem que de outro modo nunca será ouvida pelos que mandam e controlam. Como cidadão português e americano, não tenho rigorosamente nada a opor às suas ideias e propostas.

“Neste momento, – vira Noam Chomsky a sua atenção para o continente a leste de nós, comparando algumas das suas políticas com muito do que se passa no seu próprio país – assistimos a uma dinâmica levada a cabo de uma forma dramática na Europa, onde os bancos e os burocratas têm vindo a impor uma política de austeridade sob estagnação, o que quase de certeza piorá a situação e tornará mais difícil pagar dívidas. Têm sido duramente criticados por economistas, até pela imprensa económica, mas continuam a insistir na austeridade. É difícil encontrar uma fundamentação em termos económicos. Na verdade, penso que é impossível. Mas pode encontrar-se uma fundamentação. Na verdade, essa foi mais ou menos declarada pelo presidente do Banco Central Europeu, Mário Draghi, numa entrevista que deu ao Wall Street Journal e na qual afirmou que o contrato social na Europa está acabado. Por outras palavras, eles estão a aniquilá-lo”.

É claro que entre nós, as declarações públicas são precisamente o contrário, fazendo lembrar a estratégia dos Estados Unidos na guerra do Vietname, quando um dos seus generais declarou, nessa linguagem orwelliana que então começava a dominar o discurso das grandes potências, as mesmas que ainda controlam o destino da humanidade, que era “necessário” destruir algumas aldeias de um povo subjugado, para depois salvá-las, tal como ouvimos os nossos governantes dizer todos os dias que os cortes decisivos e destrutivos nos três principais sectores do Estado – Saúde, Educação e Segurança Social – são absolutamente essenciais à sua sobrevivência. De resto, Chomsky analisa ainda muitas das guerras em curso, relembrando que algumas delas, como se sabe, já têm também a ver com o acesso aos recursos naturais de zona global, e que ele prevê irem agudizar-se sob o regresso do sistema capitalista selvagem que domina praticamente em toda a parte. Surpreendentemente, para mim, pois trata-se de um país do qual raramente ouvimos alguma coisa, dado a sua aparente estabilidade e prosperidade, o Canadá é aqui mencionado de passagem, mas em termos que não poderemos esquecer. Depois de afirmar que o país a norte no seu continente está a tornar-se rapidamente num mero “protectorado” dos Estados Unidos (tal como somos e permaneceremos um protectorado da União Europeia, sem soberania integral ou poder de decisão independente), aponta os crescentes conflitos em volta das riquezas mineiras, por enquanto latentes ou fora das vistas do grande público, e insinua que podem tomar outra feição tal como estão a tomar já na América Latina e na Índia. É de um mundo tenebroso que nos fala Noam Chomsky — e durante décadas este proeminente intelectual público tem, infelizmente para nós todos, acertado.

Mudar o Mundo (re)apresenta-nos a uma voz “radical”, vinda do coração de um dos nossos impérios dominantes? Sim. A situação que vivemos na União Europeia, e muitos outros povos no mundo actual, perversamente repensado e reformulado, querendo construir e impor um futuro regresso reaccionário ao passado não é também “radical”?

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Noam Chomsky, Mudar o Mundo: Noam Chomsky e David Barsamian Analisam as Grandes Questões do Século XXI, Lisboa, Bertrand Editora, 2014.

FONTE: http://vambertofreitas.wordpress.com/2014/06/20/noam-chomsky-em-conversa-subversiva-sempre/