A bem da literatura

Em Março passado, a imprensa tratou com singular carinho a destruição em massa de livros. O caso surgiu associado a uma editora que não carece de publicidade. Na altura, a ministra da cultura recorreu ao termo “massacre” para descrever a situação e um dos senadores do nosso espírito mais ou menos desprevenido, Manuel Alegre, confessou-se profundamente “triste”. O cenário não deixa de ser patético. Com todo o respeito pelos estados de alma próprios e alheios.

O clímax ressoou nas quase mitológicas palavras de Gabriela Canavilhas, quando referiu que a “importância do livro ultrapassa a noção de mercadoria”. É um facto que herdamos culturalmente uma visão sagrada do livro. A ministra terá, pois, toda a razão. Confessemo-lo.

Em Ezequiel (3,1), o profeta ingere um rolo escrito que é imune aos sentidos e à impureza dos humanos e recebe depois ordens para comunicar o sentido dessas letras junto à “Casa de Israel” (3,4). O Apocalipse canónico do Novo Testamento apresenta-se como o duplo terreno de um Livro celeste, recebido por João através de um anjo intermediário (Ap 5,1). Na variante islâmica, a revelação é traduzida pelo “Tanzíl” (5,52) que remete para a ideia de ‘descida do céu’ do Livro eterno e único (a raiz do verbo “descer” é precisamente /NZL/).

Enfim, uma mercadoria não tem alma mas o livro, esse, seguramente tem. Aliás, basta ir ao grande banco do estado para aferirmos dos resultados de uma recente campanha de recuperação de livros usados. Eles ali estão a dormir nos seus escaparates, entregues ao desinteresse e à impaciência dos clientes e aforradores, muitas vezes carregadinhos e pó e de irremediável solidão. Não era melhor fazer aquilo por que, hoje em dia, mais se clama que é… a reciclagem? Sim, ser-se íntimo das causas do ambiente. E ser-se, em primeiro lugar, racional.

Num mercado em que a produção de livro é a todos os títulos irracional, quase um livro por hora, o que se poderia esperar? Que as empresas se endividassem com milhares de metros quadrados de armazéns apenas por causa de Ezequiel? Creio que não. Quem tem uma empresa sabe o que significa a palavra despesa. O que acontece bem menos nos corredores do estado e sobretudo na arejada brisa das mentes que herdam, desde finais de setecentos, o impoluto selo de “intelectual”.

As pessoas lêem se lhes apetece, quando precisam e se gostam. A liberdade vive por cima e nos antípodas das cinzas das inquisições, por mais veladas que sejam. De qualquer modo, o consumo de livros é, hoje em dia, desproporcionado face aos níveis de leitura. Ao mercado cabe resolver os desajustes e irracionalidades por si criados. E os novos livros, esses que não necessitam do papel para posterior destruição, já aí estão por todo o lado e cada vez em mais formatos. A bem da literatura.

LC