Quarto de Despejo, Um Clássico Escrito Com Fome, Tristeza e Dor | De Carolina Maria de Jesus | by Silas Corrêa Leite

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  • Eu era muito guri de tudo, quando se assomou em minhas mãos de imberbe leitor voraz e precoce, o livro QUARTO DE DESPEJO de Carolina Maria de Jesus, Diário de uma Favelada, em edição acho que do Clube do livro, tipo livro de bolso, e que à época por assim dizer era meio que mal visto, algo censurado nas famílias, aqui e ali algo pecaminoso, se é que me entendem… Eu mal-e-mal era um rapaz de cabelo na testa que amava os Beatles e Tonico e Tinoco. Vão vendo. Eu romântico, virgem, algo bocó de mola, fiquei cismado com o livro que me assustou, a miséria contando, uma favela, uma negra. O que mesmo que era favela? Brasil de anos 50, 60. Eu que era inocente puro e besta, li o livro como um susto, um coice, uma apuradíssima noção de real que da narrativa a palo seco não compreendia de pleno, inteiro, nem poderia, na minha casa em Itararé, em que estávamos todos felizes e ninguém estava morto…
  • Então aquilo existia, realmente, de pobre, negro, mãe solteira, favelada? A catadora de papel expunha sua vida-livro também. Doía ler. Sua cruel realidade arrebentava em nós. Ela falava pela mão da miséria, pelo punho pesado do dezelo. Literatura-verdade, literatura-documentário. As mães, filhas da pátria, num canto, no ermo, sem eira e nem beira, dando testemunho de sua vida, em páginas de sangue, suor, lágrimas. E fome, angustia, solidão, miséria, medo-ranço, dor. Será o impossível? Tem cabimento? Atinei-me com aquilo todo de um historial marrento. A dor escrevendo errado por prismas contundentes. Que despejo de vida, hein?
  • O livro que depois reconhecidamente virou bestseller e ganhou edições planeta afora, trazia um mundo desconhecido pra mim, um sonhador, um pobrinho que pelo menos era rico de família, de pai, rico de mãe. Mas havia aquela realidade sendo escrita a ferro e fogo. E eu lendo aquele desmundo, um quarto de despejo. O dia-a-dia de uma favelada, sem estudos, carente, sofrida, abandonada, a própria dificuldade da autora para obter comida, para o sobrevivencial de cada manhã. A coragem de Carolina Maria de Jesus, a sua sensibilidade, a sua contação, a sua narrativa, tudo isso mexendo com os medos da gente, os brios instintais da gente, a mente atiçada de um eterno aprendiz da alma humana, já na formação da persona ali, sondando de butuca mundos e fungos, ícaros e ácaros… amor e flor, amor e dor na capital daqueles tempos que não voltam mais…
  • Audálio Dantas, um jornalista hoje de renome e premiado, descobriu os diários da favelada. A história sangrava pelos cotovelos. O faro fino do repórter iniciante que depois se consagraria por uma postura ético-plural comunitária, ali vendo o corpo nu de uma vida, de uma história que merecia ser levantada dos escombros do chão, de uma sofrência, de uma dura sobrevivência a ferro e fogo. A fome, a principal personagem. O livro gerou polêmica, a fome ganhou um símbolo, a cor amarela, a tragédia foi pontilhada, o sofrimento revelado ao mundo, em mais de vinte países, e os quartos de despejos aumentando a enorme divida social nesse Brasil de tantas riquezas impunes, de muitos lucros injustos, de várias propriedades roubos, e essa enorme dívida social desde a libertação dos escravos que libertou mas não indenizou, depois a falta de uma reforma agrária, o golpe da canalha de 64, até o dezelo publico amoral de um presidente comunista, ateu e sociólogo, que deu com os burros nágua, privatarias, terceirização neoescravista, o funesto neoliberalismo câncer e o Brasil S/A criou outras tantas Marias, Carolinas, Alices, Clarices, Anas, todas numa abandonada periferia a deus-dará… feito uma Favela Ordem e Progresso…
  • Carolina Maria de Jesus virou um mito. Quarto de despejo tornou-se um clássico. Certamente que daria o roteiro de um belo filme ou minissérie. A dor da gente não sai no jornal? Mas sai nos livros, rompe becos, guetos, palafitas, porões, favelas e cortiços. Favores, esmolas, caridades de percurso. “Quando pobre come comida forte, dá uma tontura”(pg 158,17 de Janeiro.). O livro virou um marcante e datado mosaico da luta dos moradores da Favela Canindé, de São Paulo de tempos idos, de décadas atrás, e na sua linguagem simplória, mas crucialmente dá testemunho de seu tempo, de sua dor, de suas amarguras. E diz ela, reproduzindo-se a linguagem dos seus originais: “Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia…”
  • O impacto de “Quarto de despejo” catapultou o sucesso de Carolina de Jesus para além das nossas fronteiras e dela mesma. Quando morreu, em 1977, morando em um sítio de sua propriedade, chegou a dizer que era melhor ter continuado a viver na favela. Em verdade, nunca lhe saíram da curtida pele os efeitos de sua pobre vida, como catadora de papel e intelectual da miséria”. *Uelinton Farias Alves.
  • E vai a contação: “Tive uma infância atribulada”. “Passei 23 anos mesclada com marginais”. “É preciso gostar de livros para sentir o que senti”. “Nós os pobres somos trastes velhos”. “Não há coisa pior na vida, do que a própria vida”. “Eu escrevi a realidade”. Esses são os gomos amargos das laranjas amargas da vida de Carolina Maria de Jesus, num verdadeiro testamento doloroso de uma alma, uma mente, um coração, tudo dizendo a que veio, tudo rompendo barreiras, estrebuchando, e botando as ideias para darem testemunho, e colocando a própria dor de existir para quarar na tábua de tristices da vida.

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Silas Corrêa Leite, Professor, Jornalista Comunitário, diplomado Conselheiro em Direitos Humanos, Blogueiro e escritor premiado membro da UBE-União Brasileira de Escritores.

E-mail: poesilas@terra.com.br

Site com vida e obra da autora:  http://www.vidaporescrito.com/

Post-scriptum

 

Poema Historial

TRIBUTO HOMENAGEM

Poema Saudade Para Carolina Maria de Jesus

 

Carolina de Jesus, tu, ainda soas

Na consciência dos podres poderes

Desde muito tempo são tuas loas

E eles ainda sangram teus quereres

 

Ah se tu soubesses, poeta Carolina

Que as favelas aumentaram mais

Misérias já não estão nas surdinas

Mas ostentam sangue nos jornais

 

Teu livro, Carolina, tua triste vida

Hoje outras em periferias tantas

Divida social, uma severina ferida

Que banzos em tuas páginas cantas

 

Tantas Carolinas Maria de Jesus

Becos, cortiços, favelas, medos

Todos hoje lembram a tua cruz

E têm as deles; novos degredos

 

Escreveste a alma de um passado

Que no presente ainda é bem pior

O povo da periferia abandonado

E a riqueza impune cada vez maior

 

O município, quarto de despejo

Depois o estado, e no plano federal

Em cada excluído Carolina te vejo

Em teu enredo de lágrima ancestral

 

Negra, pobre, catadora, favelada, sensível, escreveste

A página de tua vida errante, em sangue, em lágrima, em pus

A bruteza do Brasil amalgamado em tua rica alma leste

Serás sempre brado retumbante, Carolina Maria de Jesus…

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Silas Corrêa Leite