O Organista, de Lídia Jorge

Como a própria definição o diz, o vazio é um lugar onde não existe nada, mas no interior do qual se espera venha a acontecer tudo.

Assim começa o mais recente livro de Lídia Jorge. A expectativa criada ao iniciarmos uma nova leitura também é da mesma natureza. Esperamos que todo um universo se materialize aos nossos olhos de leitor. Mas quando abrimos este livro de fina espessura, nenhuma expectativa lhe fará jus. Ninguém está preparado para a música que se desprende deste órgão.

Está escrito no Génesis que Deus, ao contemplar a obra criada, achou que tudo era belo. Talvez a chave de toda a criação seja essa passagem do caos ao belo, a multiplicação infinita do belo e a música que preenche o vazio de matéria à altura daquilo que era esperado desde o início. Sob esse desígnio, a criação toma o seu lugar, sem pauta ou recurso a outro tipo de memória. No início, o vazio chamou o órgão e, por que os dois juntos não eram nada, chamaram o homem e, por que os três juntos permaneciam incompletos, chamaram a mulher. A música primordial foi a do homem e da mulher.

 

Então o criador quis experimentar o órgão e da sua música jorrou luz, fez-se vento e as poeiras cósmicas materializaram-se no universo e o vazio foi preenchido. Várias galáxias depois, o Criador lembrou-se do homem e da sua festa, e chamou por ele. «Vem!» – disse o Criador. E o homem haveria de vir porque era uma ordem do Criador.

Mas primeiro surgiram os organismos unicelulares a que se seguiram os mais complexos, até que milhões de anos depois – demorou muito, muito tempo esse estado de chamamento – nasceu o homem e a mulher. Os dois saíram da lama, estavam tão nus como a lama, e confundiam-se com ela.

E o Criador percebeu o quanto teria de esperar para que o homem crescesse e inventasse a tecla, criasse o órgão, dominasse os registos do órgão, usasse casaca e laço e se sentasse num banco. Nesse desencontro permanecem os dois, o Criador e o criado. O apelo do primeiro e a busca incessante do segundo.

Intensamente belo, este inspiradíssimo texto dá corpo, num raro toque de génio, a uma das mais belas fábulas que alguma vez li. Ninguém sai incólume da leitura deste livro. Não existe melhor forma de preencher o vazio.

O Organista LJ