Em todas as palavras de autor o demónio está à espreita. Trata-se de uma besta insaciável, de um bicho cru, de um ladrão desmedido que rouba coisas que não lhe pertencem. Em todas as obras de autor mas não em todas as coisas escritas há um demónio a pairar. Ele chama-se escritor.
De verdade, todos os escritos de escritor são indubitavelmente caros, roubados e usados com retalhos de outros que não ele. Quer seja ficção, ou não, tudo é matéria de ladroagem. O escritor é um gatuno que materializa imagens, sons, cheiros e sentimentos e sensações e acasos e um sem número de eventos que pertenciam a alguém, em obras de arte.
É evidente que há quem escreva e quem seja escritor. Há dicionários que dizem o contrário mas a palavra “excepção” consta lá – nos dicionários pré-acordo ortográfico. Das muitas coisas que se escrevem algumas são genuínas obras de arte – como se de terra fértil se tratasse, e essas, dos escritores, são da autoria dos tais demónios, as outras, aqueles escritos, nem sempre são roubados e quando são, são mal empregues. Dos escritores mede-se a veracidade do roubo, a empregabilidade da estética no “artigo” surripiado e nas nuances, pelas páginas fora, estão pedaços de coisas que o leitor identifica como suas. E são suas evidentemente.
Num enrolar o cabelo com os dedos, num olhar fugídio, num bater de palmas, num suspiro, num berro, num sorriso, num cruzar de pernas, em tudo e em mais alguma coisa o demónio estará por perto, a besta estará a registar, estará a roubar para mais tarde, possívelmente num leito esfomeado por criar algo de valor, transformar tudo isso que é seu numa obra de arte que não terá o seu nome nos créditos, porém, encontrar-se-à numa metamorfose irrepreensivel e isso não é coisa de quem somente escreve, é coisa de artista, é coisa de sensível. Isso é coisa de escritor.
N’O Processo de Kafka está patente o pandemónio da existência do ser no mais profundo consentimento, ou até submissão, com o universo e isso é intemporal. O mesmo aplica-se ao A voz subterrânea do Dostoiévski, ou seria ele assim tão mau e tão doente, ou pior ainda seria ele todo um suicída nas suas gavetas mentais? Até Pessoa era um aldrabão com toda aquela história dos inúmeros heterónimos. Cabiam nele todos os Ricardo Reis e Álvaro de Campos – é verdade, mas são matéria de pedaços que foi encontrando noutros ao longo dos dias, embora com uma ornamentação sublime. Os exemplos não caberiam todos por aqui.
Cuidado! O escritor anda à solta e com uma sede imparável e angustiante. Não há exorcismo que o pare.