I
Ainda há muito que se desvendar a respeito da história da propriedade no Brasil e o livro O Direito às Avessas: por uma história social da propriedade (Vinhedo: Editora Horizonte, 2011), de Márcia Motta e María Verónica Secreto (orgs.), ajuda a jorrar luz sobre um tema que, depois dos pioneiros trabalhos na década de 1980 da professora Maria Yedda Leite Linhares, doutora em História Moderna e Contemporânea pela Universidade do Brasil (1954) e professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e pesquisadores como Ciro Flamarion Santana Cardoso e Francisco Carlos Teixeira da Silva, caiu no limbo à medida que as expectativas por uma reforma agrária foram defraudadas e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e suas reivindicações perderam força e visibilidade, ainda que no poder, nos últimos anos, tenha estado um partido que se apresentava como representante dos oprimidos e injustiçados.
Conjunto de estudos e pesquisas originais, de vários autores e de universidades e instituições distintas, este livro reconstitui os embates pela terra desde o século XIX em várias partes do Brasil, de Minas Gerais, com certeza hoje a região mais contemplada por trabalhos de pesquisadores, ao Rio Grande do Sul, passando pela província do Rio de Janeiro, especialmente a região de Valença, e a Bahia, até o Pará, onde ainda hoje a situação no campo, senão é explosiva, pode se assemelhar a um barril de pólvora à espera de uma faísca.
Na maioria dos casos, como observa a professora Elione Silva Guimarães, doutora em História pela UFF e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora e do Núcleo de Referência Agrária, em seu ensaio “Propriedade e pobreza: os dilemas do Império do Brasil”, que analisa as batalhas judiciais pela posse da Fazenda da Tapera, em Juiz de Fora, as histórias recuperadas denunciam o divórcio entre propriedade e pobreza, ou seja, a falta de recursos de homens do campo para enfrentar nos tribunais de justiça os homens poderosos – política e economicamente – que freqüentemente invadem as terras dos mais pobres, forjam títulos de compra e de muitas maneiras os destituem de suas propriedades.
Isso não exclui a própria história que a pesquisadora resgatou nos arquivos a respeito do filho de uma família de proprietários que, sem talento para os negócios ou pródigo, perde sua fortuna e com ela o prestígio e o crédito que lhe permitiriam contratar bons advogados para defender seus interesses no Tribunal de Justiça e, quem sabe, reaver parte das terras e bens perdidos. Dessa maneira, é levado a hipotecar suas propriedades para pagar os honorários de seu advogado.
Já no ensaio “Sendo senhor: eu grilo. A desconstrução das cadeias sucessórias”, o professor Cristiano Luís Christilino, doutor em História pela UFF e pós-doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, destaca as irregularidades que marcaram a distribuição de terras no Rio Grande do Sul, em que muitas das próprias autoridades se valeram do poder momentâneo para açambarcar propriedades alheias. Foi o caso de D. Luís Teles da Silva Caminha e Meneses, quinto Marquês de Alegrete, que foi governador da capitania do Rio Grande do Sul de 1814 a 1818, período em que incorporou entre seus bens pessoais vastas áreas da Coroa.
Sem contar burocratas que se valeram dos seus cargos e influências para se apropriarem de terras devolutas, ou alheias, que eram vendidas depois da obtenção das concessões, como denunciou Antônio Gonçalves Chaves, político e charqueador em Pelotas, em suasMemórias ecônomo-politicas sobre a administração pública do Brasil, de 1822 (São Leopoldo: Unisinos/Copesul, 4ª ed. 2004).
II
Em “Entre a lei e sua aplicabilidade: a gestão das terras devolutas na região do Rio Grande do Sul durante a Primeira República (1889-1925”, Marcio Antônio Both da Silva, doutor em História pela UFF e professor adjunto do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, citando artigo da professora Márcia Motta, que consta de Desvelando o poder: histórias de dominação: Estado, religião e sociedade, de Ângelo Adriano Faria de Assis et alli (Niterói: Vício de Leitura, 2007), lembra que a palavra posseiro só existe no português falado no Brasil, pois está vinculada ao processo de apropriação de terras no País e ao conjunto de leis que, ao longo da história, procuraram regular a questão, mas que, de certa forma, acabaram por beneficiar os grandes proprietários.
Segundo Márcia Motta, enquanto os fazendeiros ricos eram identificados como desbravadores e tomados como cúmplices do enriquecimento das províncias, o que, entre outras coisas, é resultado de sua proximidade com o Estado e a sustentação que davam ao governo em troca de benefícios camuflados, os lavradores pobres eram apontados como “invasores” ou “intrusos”. Estes, geralmente, eram identificados na documentação da época como “nacionais”, ou seja, um grupo formado por uma população luso-brasileira de camponeses pobres, também conhecidos como homens livres pobres, brasileiros, caipiras, caboclos e outros termos.
Como assinala Both da Silva, também os imigrantes e seus descendentes, a partir de um dado momento, quando começam a se dirigir para as zonas de fronteira agrária sem a intervenção dos organismos do Estado responsáveis por gerenciar o povoamento, passam a receber o qualificativo de “intrusos”. De ressaltar também, diz o pesquisador, é que os conflitos por terra não se resumiam ao embate entre fazendeiros e lavradores pobres, mas aconteciam também dentro desses grupos, inclusive entre potentados.
III
Em seus 17 capítulos, O Direito às Avessas não deixa de abordar questões que continuam polêmicas, mas que remontam aos primeiros séculos da colonização. Em “No jogo das identidades: terras indígenas e conflito no oitocentos”, Marina Monteiro Machado, doutora em História pela UFF e professora da Fundação Getúlio Vargas, conta como o aldeamento de Nossa Senhora da Glória de Valença, criado para “pacificar” os índios que vinham sendo denunciados como uma “ameaça” à ocupação dos sertões, vira, mais tarde, motivo de disputa entre moradores e sesmeiros. Segundo a autora, a utilização da noção de uma identidade indígena tornou-se uma estratégia de moradores/posseiros para assegurar o acesso à terra.
Em “Os que têm fome e sede de justiça: conflitos rurais na mesa de Getúlio Vargas”, Vanderlei Vazelesk Ribeiro, doutor em História pela UFF e professor de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), expõe a correspondência encaminhada à presidência da República no período Vargas (1930-1945) que mostra como os pobres do campo escreviam ao presidente, tomando-o como “justiceiro”, capaz de defendê-los diante do poder local ou estadual, que estaria comprometido com os interesses dos patrões ou dos mandões provincianos.
Por fim, no último capítulo, Mariana Trotta Dallala Quintans, doutora pela Unversidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em “Constituição cidadã! Direito à terra e conflito nas leituras da Carta-Magna”, analisa os conflitos mais recentes pela posse da terra no Brasil, lembrando que os últimos governos apenas fizeram desapropriações em áreas de conflitos, com a política agrária sendo implementada de forma compensatória.
Segundo o balanço que a professora Mariana procurou fazer, as decisões judiciais a partir da Constituição Federal de 1988 têm apresentado conteúdos diferentes: algumas entenderam as ocupações coletivas pelas organizações de trabalhadores rurais sem terra como ilegais, enquanto outras as consideraram como forma legítima de pressão popular. Ou seja, umas entenderam o direito de propriedade como absoluto e incondicional; e outras foram ditadas a partir do princípio da função social da terra. Seja como for, a reforma agrária no Brasil ainda está em gestação e não se sabe se, um dia, ainda haverá de ser feita. O que se tem como certo é que muitas disputas ainda haverão de ser travadas.
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O DIREITO ÀS AVESSAS: POR UMA HISTÓRIA SOCIAL DA PROPRIEDADE, de Márcia Motta e María Verónica Secreto (orgs.). Vinhedo-SP: Editora Horizonte; Niterói: EDUFF, Guarapuava: Unicentro, 479 págs., 2011, R$ 45,00.
E -mail: contato@editorahorizonte.com.br Site: www.editorahorizonte.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail:marilizadelto@uol.com.br