Terminada a grande celebração litúrgica, o povo dá então largas ao seu contentamento, ao seu entusiasmo, à esperança de que as suas preces tenham sido ouvidas. Porque as consciências repousam agora na paz das penitências cumpridas.
Esquecem-se os joelhos sangrados e o peso dos círios. Os risos trepam aos olhos onde a comoção, pouco antes, tinha feito poiso. As almas soltam-se. As conversas são outras. Só é preciso ter fé, e essa tem-na o povo.
Por isso faz as suas procissões. Recama, por sua mão, com pétalas de flores, os caminhos que pisam os seus santos. Faz e cumpre promessas. Invoca Cristo.
Mas sem alegria a devoção não é perfeita. Daí, a necessidade do deslumbramento feérico das luzes a iluminar cansaços de imensa escuridão. Do aconchego das vozes nos ouvidos que poucas falas escutam. Da presença de quem não se conhece e se aceita por companhia e por amigo. Da blusa nova conquistada ao mealheiro. Dos aromas, peregrinos de paisagens, nomes e distâncias. Do pão, a lembrar das mãos os gestos que percorrem as searas. Dos foguetes, sem asas para tocar os céus. Dos abraços, da música, da magia, a envolverem o corpo e o espírito num tule de segredos que ninguém descobre.
No mar de gente, como se fora tão-só o mesmo corpo, um único desejo. Quase ingénuo, por tão simples. E tão pouco exigente por tão puro: ver, ouvir, participar – estar presente.
Faz-se a reconciliação com o dia-a-dia. Com as horas que o tempo esgota sem compromisso de regresso. Tréguas tão breves, essas. Contudo, as que são permitidas e possíveis. O mundo não é assim. Muito menos a vida.
Para esquecer rotinas que obrigam ao retorno, há que viver a festa. Respirá-la. Bebê-la. Como se fora um campo de lilases. Uma fonte que socorre a nossa sede. Ainda que a ilusão dure tão pouco. Que a evasão seja tão breve – irremediavelmente, por um ou poucos dias.
Soledade Martinho Costa