(Des)amor, cultura e história

Como prisão antropofágica, a ilha sorve, pelo mesmo cano de esgoto, as águas do bem e do mal, sem se preocupar em apurar se alguém escapou à mácula do pecado.

Álamo Oliveira, Murmúrios Com Vinho de Missa

Vamberto Freitas

Vamos de imediato ao essencial aqui: Murmúrios Com Vinho de Missa é tudo aquilo que pensam ou deduzem do seu claríssimo título, um grande romance que tem como tema principal a maior de todas as hipocrisias da nossa sociedade, a sua atitude ante o que define como sendo sexo ou relacionamento ilícito, seja lá isso o que for, mesmo quando só adultos se envolvem corpo a corpo entre quatro paredes ou entre milheirais, dentro ou fora da Igreja, na ilha, sim, mas depois em qualquer parte como, por exemplo, na cidade norte-americana de New Orleans, de onde nos conta estas estórias uma professora universitária açoriana, a narradora intelectual Lucília. Passada esta questão tão brilhantemente ficcionada nestas páginas, este novo romance do terceirense Álamo Oliveira é muito, muito mais do que isso, tanto no seu restante conteúdo como na sua forma, ou estrutura narrativa. Simultaneamente integrado em praticamente toda a obra em prosa do autor, especialmente desde Pátio de Alfândega, Meia Noite a Até Hoje (Memórias de Cão), este livro quase funciona como uma súmula dos seus interesses e obsessões temáticas desde o início da sua carreira como poeta, dramaturgo e ficcionista: o nosso lugar de ilhéus no mundo, como vivemos e sobrevivemos num arquipélago e nas comunidades norte-americanas, que são a sua íntima extensão, como se ergue e perpetua uma cultura e um modo de vida na escuridão dos séculos, como amamos e como odiamos (fazendo lembrar os seus Contos Com Desconto), com a primeira e recente visão histórica e política da saída ou da aceitação mais ou menos conformada do nosso labirinto social, e muito especialmente do nosso labirinto interior. De página a página estão passos lapidares e fulminantes sobre a vida em ilha, quer para os que nunca dela saíram definitivamente, quer para os que do lado de fora revêem e repensam o seu destino, os que poderão estar libertos das amarras circunstanciais das origens, mas sem nunca conseguirem fugir ao seu passado determinante, enublando para sempre o resto das suas vidas em qualquer outra parte. Disto e de algo mais ainda é feito este romance, quebrando tabus e reimaginando outros percursos de vida entre o amor e o nada.

Murmúrios Com Vinho de Missa está estruturado em duas partes que parecem distintas (fazendo lembrar As Palmeiras Bravas de William Faulkner, na tradução de Jorge de Sena), cada uma correndo na sua direcção rumo a um desfecho que se adivinha fatal para vidas distintas e que estariam distantes no tempo e no espaço, não fora sempre o destino à procura de vítimas, ou então rumo a consequências que deixarão feridas de alma. A narradora, uma Professora

Lucília, com mais de cinquenta anos de idade e originária da ilha de São Jorge que cedo deixou rumo a Lisboa onde ingressou no ensino, encontra-se desde há alguns anos como Leitora do Instituto Camões na Universidade de Tulane, em New Orleans, a cidade carnavalesca sulista e mississippiana, historicamente de costas voltadas para o pudor e puritanismo do norte, a braços com uma tese de doutoramento e com a sua solidão e carência. Deste lado de cá, e com mais ou menos a mesma idade, encontra-se o Padre Raul Soares, também jorgense mas colocado numa paróquia da Ilha Terceira, tendo já caído literalmente nas garras de um rapaz homossexual pós-tropa, que usa o sexo como moeda de troca e chantagem materialista como satisfação maior. Num acaso bastante plausível, Raul e Lucília encontram-se um dia num café na cidade do sul, quando ele ia a caminho da Califórnia em visita à família, aparentemente toda ela emigrada, toda ela, que nunca vemos ou ouvimos, paradigma da historicidade açoriana. Padre Raul, desde sempre também homossexual que permanecera descomprometido de relações estáveis, está a viver os seus dias de medo pelo que o rapaz lhe pode fazer publicamente, e pede à sua conterrânea e velha amiga para que escreva a sua história, como que num acto de redenção possível. A narradora, por sua vez, enquanto escreve o que ela considera um mero “rascunho” do romance, vai contando a natureza e a cor dos seus dias, a sua própria relação íntima com um estudante brasileiro, que da cama faz mais uso do que dela usufrui, ou do que lhe dá – nem amor, nem carinho, nem respeito. Suga-a, tal como faz o amante do padre açoriano, até às últimas. A “pedofilia” aqui, como se diz a dado momento, é entre adultos, com sexo consensual, mas com a sociedade em geral servindo de ameaça hipócrita, pois se no caso da Igreja o fruto proibido deve assim permanecer, na Escola de ensino superior não houve juramentos ajoelhados, mas a negação da atracão entre adultos é do mesmo modo interdita e condenada, quase sem apelo. Entre a sacristia e o quarto do padre Raul e a cama da Professora Lucília, ficamos todos nós, a própria sociedade, depreende-se sempre da fala da narradora, com os nossos próprios segredos, as nossas transgressões, desta ou doutra natureza.

Álamo Oliveira, tanto na sua poesia como na ficção, conseguiu sempre fugir de um existencialismo arrogante – o indivíduo, diga-se assim, fechado na sua redoma e inventando valores próprios para autojustificação do seu rumo na vida – colocando os seus protagonistas e demais personagens bem no centro da vida comunitária, todos nós apanhados irremediavelmente pelas teias da História, pelas vontades colectivas das sociedades a que pertencemos, tecendo cada um deles, ora aberta ora escondidamente, a felicidade possível, a liberdade maior adentro das prisões que são especialmente as ilhas, por definição cercadas por todos os lados. Murmúrios

Com Vinho de Missa é um romance de profundas ironias, raramente de sarcasmo, a dupla narrativa de uma professora na sua maturidade pessoal e intelectual é mais feita de questionamentos do que respostas ou vinganças dos incompreendidos. Movendo-se entre uma das cidades americanas sexualmente mais abertas ou liberais (a pouco mais, para além da sua história radicalmente esclavagista, injustamente, se associa New Orleans na mente de quase todos) e a pequenez e cerco de uma ou outra ilha açoriana fechada, são os personagens que mais nos marcam, não a estória ela própria, mas sim o modo como cada um ou uma resolve ou não os seus dilemas, os seus desejos irreprimíveis e “demasiado humanos”, sobrevivendo, apesar de tudo, livre adentro da prisão sem grades, mas tormento que toma variadas formas para cada ser humano nela encarcerado. É aqui que o romance também nos oferece uma prosa fulgurante entre a poesia pura e a narratividade de coisas e gente, que só um escritor com a idade, o talento inato e a experiência de Álamo Oliveira nos poderia oferecer. Geografia (que Nemésio dizia ser de importância suprema para nós, lembremos), história, emigração, ditadura civil e religiosa, anos de chumbo e de catástrofes naturais – eis aqui uma das mais profundas visões da humanidade a meio Atlântico, perseverante, oscilando por vezes entre a raiva e o ódio, eis aqui uma outra dramatização da nossa vida quotidiana, na rudeza dos campos e na criatividade artística, na solidão brumosa e de todo isolada, assim como, sempre, na vastidão de outros continentes e cidades.

“Ordeno – diz a narradora do seu exílio americano a meio do romance – prioridades: a tese, as aulas, o romance, a ilha. A ilha? A que propósito ela ocupa um honroso quarto lugar, se não penso reconciliar-me com ela, nem sequer por procuração? Não dobrar a finados dentro do peito. Ilha é um pedaço de sentimento rodeado de apreensões por todos os lados. Por isso, nem por fastio mental me falem de ilhas envoltas em nevoeiros misteriosos, condenadas aos malefícios das alquimias medíocres E não me falem também em ilhas virgens com o mesmo sotaque do animal em cio. É que não há ilhas inocentes. Não há”.

Para além de tudo isto, Murmúrios Com Vinho de Missa creio ser a primeira grande narrativa açoriana que se aproxima do chamado “romance académico”, não fora a sua narradora uma professora universitária a doutorar-se, dando-nos algumas olhadas ao interior de uma instituição do ensino superior, ou simplesmente deixar-nos entrar na vida privada de um professor ou professora. Do mesmo modo, também não creio existir outras páginas que nos levam ao fundo da vida interna, fechada, de um seminário nosso e dos seus adolescentes e

adultos em preparação para a sua vida religiosa, e sobretudo celibatária. Este não é um romance “pacífico” – nenhum bom ou grande romance o poderá ser. Mexe, e muito com os seus leitores.

Valdemar Freitas