Retornando a Alguns Versos, não parece, portanto, sem sentido que “as letras brancas de alguns versos me espreitam”. De fato, é o poema que espreita o poeta e não, primeiramente, o inverso; cego para seu ego, cego para aquilo que é o mais arraigado na individualidade do poeta, cego para um fundo positivo de si, cego para, como diz outro poema, qualquer visceralidade que faria dele um poète de merde que daria ao mundo, ao invés de poemas, merde de poète, o poeta simplesmente reafirma o que, caçando-o, o tomou, trabalhando a seu favor. É o mesmo o que Antonio Cicero afirma em Sobre Pearblossom Hwy., um ensaio a partir de uma colagem de fotografias de David Hockney: “Na relação entre o poeta e a poesia, esta é o fim daquele. Ora, dado que o fim subordina os meios, e não vice-versa, o poeta é um servo – um servo voluntário e apaixonado, é verdade, mas um servo – da poesia. Nessa relação, não é ela que se inclina às conveniências dele, ao contrário do que querem os que pretendem usar a poesia como um veículo para se exprimir, mas é ele que deve dobrar-se às exigências e aos caprichos – inclusive aos silêncios – dela”. Em Alguns Versos, em que aparece a experiência da criação, a que o poeta, espreitado pelo poema em fazimento, voluntária e apaixonadamente, serve, para servir à poesia? Que experiência é essa, a poética? Qual é o poético que, nas linhas que espreitam o poeta, quer caçá-lo? O que o poema guarda para o poeta e, consequentemente, para o leitor, que refaz a abertura do caminho do poeta? Qual é o espanto proporcionado pelo poético desse poema? Retomemos o poema:
As letras brancas de alguns versos me espreitam,
em pé, do fundo azul de uma tela atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde ao levantar quase nada o olhar
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.
Na primeira metade do soneto, o mundo atualizado do poeta em trabalho, ou seja, o cotidiano presentificado em torno da mesa do escritório onde a tela de computador se apoia, se revela retratado e feliz. A simetria é envolvente, fazendo todos os elementos convergirem para o ponto em que, lugar de nascimento e realização do poema, tudo está em concordância: a tela do computador. Um poeta escreve um poema, o que, agora, é o mesmo que dizer que um poeta é escrito por um poema. O quadrado ou o retângulo da tela do computador, na qual o poema é escrito, se mostra concretamente; e, logo atrás dela, também quadrada ou retangular, colocando-as em relação, encontra-se uma janela que o poeta vê ao levantar ligeiramente o olhar das linhas que escreve. Aumentando a correspondência, é curioso lembrar que, em inglês, janela é window, palavra que, no plural, denomina o sistema operacional mais usado em computadores de todo o mundo. Ajudando a possibilidade dessa analogia, há o fato de que em Ignorant Sky, a ambivalência entre o sentido de janela e o do sistema operacional Windows já existia: “So you made a cockpit of your bedroom/ And opening electronic windows up/ You scan the universe for kicks, and zoom/ A distant face to get a fake close up”.
Continuando a simetria, pela janela do escritório e, simultaneamente, pelo Windows em funcionamento na tela do computador, uma acácia se mostra iluminada pelo sol, que leva seu tom amarelado para as folhas da árvore. Tendo em conta que a acácia dá grandes cachos de flores amarelas, ela também se mostra, de algum modo, como um sol. Em suas folhas amareladas pela luz da tarde e cachos dourados potenciais, a acácia preserva e duplica o sol. Filtrada pela árvore, a luz do sol adentrando a janela não é demasiadamente forte nem exageradamente fraca: ajudando a compor a naturalidade da tarde, é uma “luz natural”. Com o sol amarelo e a “luz natural” do dia, a acácia adentra pela bela e tranquila janela e pelo Windows, pela tela do computador. Marcelo, a pessoa amada que recebe a dedicatória dos dois livros do poeta e do segundo do filósofo, tema explícito de Elo e Declaração, está para chegar, fato que, trazendo o amor para o poema, acrescenta a cotidianidade serena, alegre e venturosa que envolve o poeta.
Em Declaração, é dito que o amor do poeta a seu amado é declarado, entre outras coisas, por “os meus olhos felizes quando o vêem chegar/ feito um presente e de repente elucidar/ a casa inteira que, conquanto iluminada/ permanecia opaca sem você”. Em mais uma simetria que faz tudo convergir para o poema, a pessoa amada traz em si o sol (mais do que iluminador) elucidante já presente no céu, na acácia e na luz natural que adentra a janela e a tela. Se a acácia é o segundo sol do poema, Marcelo é o terceiro, sem que haja nessa magnetização poética qualquer perda de luz entre esses elos que preservam e desdobram o primeiro sol. Importante observar que, total ou parcialmente, “tela”, “janela”, “amarelar” e “Marcelo” reiteram entre si o segmento fonético final de cada uma dessas palavras, continuando a conformidade geral do poema. Em Balanço, poema inédito, Marcelo aparece explicitamente como alvo do desejo de felicidade, da mesma felicidade que o poeta sente ao vê-lo chegar, bem condizente com o afeto que Alguns Versos quer transmitir ao leitor: “Que ao menos/ os deuses façam felizes e maduros/ Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos”. O amor feliz e maduro também se mistura aos versos do poema. E, no divertido Canção de Paulo, de A Cidade e Os Livros, o vínculo entre a pessoa amada e a luz, mais uma vez, se faz presente: “eu quis fazer um poema/ que fosse a fotografia/ do meu amor: o problema/ é que quando ela sorria,/ posava, dizia “agora”/ e a terra se iluminava/ toda do lado de fora,/ do lado de dentro a lava,/ não cabendo mais no centro,/ provocava um terremoto/ gostoso, tendo o epicentro/ em meu sexo, e aí tremia/ tudo na hora da foto,/ ou melhor, da poesia [o grifo é meu].
Com “fundo azul e letras brancas”, a tela do computador é o lugar para o qual converge a totalidade manifesta e contingencial que diz diretamente respeito ao poeta: o céu aberto, o sol, a “luz natural”, a acácia, o vento, a janela, a expectativa de encontro com o amor, o trabalho da escrita em realização, a felicidade, o mar e o fundo do mar (que ainda aparecerão)… Do céu aberto ao fundo do mar, tudo se presentifica no poema, nos fazendo lembrar a “estranha devoção” do poema Ignorant Sky, já mencionada. Com “fundo azul e letras brancas”, a tela do computador reúne em si a totalidade explícita do mundo desde o céu até o fundo do mar, com os quais, pela cor, mantém a simetria. Aliás, em mais uma simetria reveladora da totalidade aparente, em Elo, Marcelo, a pessoa amada, é “Esse horizonte azul assim sem reta” que estabelece o elo entre ar, mar, céu, nome, ser e não ser. Tal elo é a indiscernibilidade entre todos esses termos. Na tranquilidade inicial feliz de Alguns Versos, apenas a situação de “alvoroço” do vento soprando na árvore indica que uma intensidade maior, irrompendo, está por vir. E vem. Pela tela do computador, aproxima-se um acontecimento que não é apenas do que já está evidenciado enquanto o atualizado para o poeta. Chega um novo acontecimento ao poeta. Exatamente no meio do poema, condensando, nesse momento, sua maior voltagem, eclode, subitamente, uma experiência de alegria extática capaz de, tirando o poeta de si mesmo, fender o tempo atual expondo-o a um “fora do presente”. Eis a experiência poética central, à qual o poema e o poeta servem: “[…] E de repente, de fora/ do presente […]”. Se, desde Platão, sabe-se que o poeta descobre um “fora de si” que o constitui, se, desde Keats, sabe-se que o poeta “não tem Identidade” nem um “si mesmo” e se, desde Rimbaud, este fora de si ganha o estatuto de “um outro”, dando sequência a estes acontecimentos tão flagrados por inúmeros poetas e pensadores, Antonio Cicero faz, no poema, uma experimentação extática de sair de si saindo do tempo presente. A escrita mesma do poema parece trazer à tona a possibilidade dessa saída – desse despencamento súbito, desse salto inesperado, desse afundamento repentino, desse deslocamento imprevisto – de si e do tempo.
Há um modo dito de se surpreender fora de si e do tempo presente: “de repente”. É “de repente” que o poeta se surpreende fora do presente. Contrariamente a muitas expectativas, “de repente” não é um jeito de se estar no tempo, mas, antes, uma maneira de se pegar “fora do tempo”. Dizendo com outras palavras: se “de repente” é, por exemplo, associado em geral ao instantâneo ou ao momentâneo ou ao átimo do agora, ou seja, a uma porção mínima do tempo que corre e no qual eucronicamente estamos, o poema nos mostra que o “de repente” diz respeito a um fora de toda e qualquer determinação temporal. “De repente” é, isto sim, uma determinação do atemporal, do acrônico ou do extemporâneo que faz aparecer uma força de irrupção a, impondo-se, enviada sabe-se lá de onde, levar tudo de roldão. Quando ele ocorre, ou quando “de repente” o acontecimento eclode, é como marca de um salto súbito que, na mudança de um estado anterior, concretiza o que, antes do acontecimento, se supunha intangível, uma pura abstração sem qualquer penetração corporal. Não que, em sua emergência, ele perca sua estranheza, se torne apreensível, domesticado, banal, mas sim que, em seu acontecimento, a própria estranheza, a própria inapreensibilidade, o próprio selvagem, o próprio extraordinário ganham corpo – incorporam-se. “De repente” é o mostrar-se do real a quem a ele, como o poeta, se entrega com total devoção. Não à toa, em poema já mencionado, Antonio Cicero pode se declarar a seu amor por “os meus olhos felizes quando o vêem chegar/ feito um presente e de repente elucidar/ a casa inteira que, conquanto iluminada/ permanecia opaca sem você”. “De repente” é o modo amoroso de o real, mais do que se iluminando, elucidando-se, presentear quem, convivendo em intimidade com ele, o ama; “de repente” é o modo amoroso de o real, elucidando-se, presentear quem o ama enquanto “casa inteira”, mostrando, em seu excesso de luz que, quando de seu acontecimento, o que antes parecia iluminado, estava, ainda assim, opaco. A luz repentina do real faz com que tudo que antes, mesmo iluminado, pareça opaco, sendo, de fato, elucidado, ou seja, realizando-se, saia de si e do tempo presente, habitando uma nova morada.
Essa saída injeta uma porosidade no cronológico. Através dela, o poeta passa para outra dimensão, extemporânea ou “agoral”, desde a qual, em lágrimas de exultação, parece apenas lembrar saudosamente da beleza passageira da tarde emque antes estava imerso e que, de “fora do presente”, intempestivamente, “agoralmente”, contempla. Fazendo o poeta sair de si e do tempo presente, a urgência dessa cisão entre o presente e seu fora, entre o poeta na tarde contemplado e o fora do tempo contemplador, revela o próprio presente de um modo jamais imaginado por quem está inteiramente fixado nele. Contemplando o que era atual como algo que jamais retornará, ele vê a tarde ir embora e, com ela, levá-lo em seu tempo presente em direção ao mar extemporâneo, em direção ao mar agoral. O poeta é o ponto nevrálgico que vive a diferença tensiva entre os polos do presente e do fora do presente, transitando pelas maiores voltagens dessa passagem. Suportando as excitações que, convocando o poeta para um novo despertar, o chamam para fora de si e de seu tempo atual, as fibras de seus nervos conduzem os impulsos de uma parte a outra. A vida do poeta o coloca exatamente nessa passagem, nas fissuras e nos liames, nas desarticulações e nas articulações, que aproximam e afastam os extremos do temporal e do intempestivo “agoral”. Estando colocada no presente, dele, ela é arrancada, através de uma brecha qualquer indispensável, através de uma rachadura qualquer que subitamente se anuncia. O intempestivo ou extemporâneo ou “agoral” irrompe de repente no seio do temporal levando-o a um fora de si que o transforma. Sem dúvida, a poesia é uma artrologia, mas, por isso mesmo, é igualmente uma arte do deslocamento e da desarticulação. Nessa duplicidade tensiva, vive o poeta. Passando por fora do presente (fora, entretanto, que não haveria sem o presente), escapando dele, o extemporâneo “agoral” é vivido enquanto uma pulsação – nada abstrata – do real que se apresenta na dissolução do atual. Sair do presente sem sair para um exterior do real, ou melhor, sair das atualizações do presente para, desde um fora do cronológico, mergulhar no mais fundo do real, no diluidor das formas que é também manancial ou, ainda mais, socavão, de onde nascem e se iluminam todas as atualizações para fazerem o mundo e a história dessa e de outras tardes, manhãs, noites, madrugadas…
Em seu caráter faltoso, o atual é o ausente que não mais retorna para que, fazendo sua experiência, o extemporâneo ou o “agoral” possa comparecer. A nostalgia exultante sentida pelo poeta é decorrente do acontecimento súbito que faz com que não seja o anteriormente vivido que, de sua ausência, voluntária ou involuntariamente, retorne em sua lembrança, mas, antes, é um não vivido, um fora do presente, um fora do passado, um fora do futuro, um fora de todo e qualquer tempo determinado que, de seu esquecimento, eclode, guardando nele o poeta. Intempestivo, “agoral”, o poeta é aquele que, em todo vivido e em todo presente, lida com o não vivido e com o esquecimento. Acontecendo o acesso inesperado, o não vivido se revela contemporâneo do vivido, o esquecimento se revela contemporâneo do presente, o extemporâneo se revela contemporâneo do atual. Estão certas as pessoas que chamam Antonio Cicero de um poeta clássico, mas erram nos motivos: ele não é clássico por alguma razão formal ou temática de seus poemas (o que seria muito pouco), mas por ter a força de criar desde a descoberta poética de um fora do presente, para repetidamente interferir na atualidade de seu tempo, fendendo-a, fazendo esguichar nela uma potência a que estratégias de poder da atualidade não querem deixar se ter acesso. Se a poesia lírica é vista, desde seu começo, como a do aqui e do agora nos quais o poeta se anuncia, o fato é que, também desde seu começo, os vetores temporais, locais e individuais se apagam, descobrindo os foras de si de suas demarcações – estes, sim, poetados, estes, sim, os motivos dos poemas, estes, sim, os que pensam o poema. Não sendo primeiramente do passado nem do futuro, a poesia lírica é a que parte do presente para cantar (desde) sua cava, (desde) sua implosão, por onde emerge o fora do presente, o extemporâneo. Muito mais do que objeto do poema, a abertura entre o presente e o extemporâneo, a passagem do atual para o intempestivo, a imersão no “agoral”, é que se pensa no poema.
O poema flagra uma ambiência cindida entre o temporal e o extemporâneo, de tal modo que o temporal (as configurações mundanas do presente) é violentado pela chegada do extemporâneo, do “agoral” como o real enquanto a possibilidade dos mundos, sendo mesmo uma passagem, uma abertura, uma entrada, um acesso, uma cavidade para tal potência. Se essa abertura pode estar na materialidade do mundo, é porque, ao lidarmos com o mundo, já estamos na linguagem, sendo nela que lidamos com ele. Enquanto abertura para o ilimitado real do extemporâneo, a linguagem se faz poema, fazendo do poema a manifestação do extemporâneo no tempo, do imaterial na matéria, do incorporal no corpo, do ilimitado no limite, do fora de si em tudo o que há. Talvez a força maior do poema seja a de levar o presente, que não pode se consolidar em uma história, para um fora de si, para um horizonte dinamizador do tempo presente e, consequentemente, dos outros tempos e da história. Talvez a força maior da arte contemporânea seja passar pelo presente para, em alvoroço, arrastá-lo ao extemporâneo; talvez a força maior da arte contemporânea seja, lidando com o presente, fendê-lo, atravessá-lo, perfurá-lo, cavá-lo, até encontrar seu fora; talvez a força maior da arte contemporânea seja revivificar a vida dos viventes na sobrevivência do extemporâneo que lhes cabe. O extemporâneo leva o presente a se fazer contemporâneo do latejo da origem de qualquer e de todos os tempos, da pulsação mesma dos movimentos inapreensíveis da história. É desde o presente que podemos sentir melhor essa palpitação da origem, já que ele é o tempo no qual estamos lançados e que faz coexistir todos os outros tempos. Como já mostrado, a poesia de Antonio Cicero é uma poesia de todos os tempos e de todos os lugares, de uma heterocronia e de uma heterotopia. Da mesma forma, escapando da antinomia do antigo e do novo, a poesia de Antonio Cicero é de tempo nenhum e de nenhum lugar, de uma acronia e de uma atopia. A poesia de Antonio Cicero se coloca no intervalo enigmático entre o tempo presente, a acronia e a heterocronia, entre o lugar atual, a atopia e a heterotopia. A poesia de Antonio Cicero descobre um princípio de intercambialidade ou de conversibilidade entre tais termos.
Enquanto a atualidade implica uma noção qualquer de delimitação topográfica e temporal, a poesia, experimentação privilegiada da linguagem, descobre uma fenda no espaço e no tempo (uma atopia e uma acronia), criando neles justaposições inesperadas de espaços e tempos, simultaneidades do próximo e do longínquo ou do antigo e do novo. No lugar de um espaço e de um tempo quantitativos, juntando o disperso e dispersando o reunido, a poesia cria encruzilhadas qualitativas – intensivas – possibilitadoras de encontros de forças espaciais e temporais imprevisíveis. Em suas configurações desenraizadoras, há na poesia uma diagonal de desprovincianização que, através da deslocalização do localizado, engendra vizinhanças heterogêneas impossíveis fora dela. Desenraizadora, a poesia é cosmopolita, cosmopolita, a poesia é contemporânea, contemporânea, a poesia impõe uma força de atração para fora de nós, de nosso tempo, de nossa história, de nosso lugar… A partir de nós, ela cria outros fora de nós, de nós, ainda que supostamente em nós, ela cria um fora, ela obriga nosso tempo a fugir sabe-se lá para que fora dos tempos, ela exerce tal força sequestradora nos espaços em que estamos que subitamente dá neles um sumiço total ou parcial, desespacializando-os. No que diz respeito à poesia, a todo momento, trata-se de uma heterogenia espacial e temporal, de uma heterotopia e de uma heterocronia que coloca os tempos e lugares demarcados em suspensão. Contrariamente ao que parece, a poesia neutraliza a rigidez do quem somos, onde estamos, em que momento vivemos. Por isso, ela sabe como ninguém quem (não) somos, onde (não) estamos, em que (fora do) tempo vivemos. Em vez de, utópica, inventar ideiais de tempos e lugares irreais desejosos de um dia serem alcançados enquanto tempos e lugares que, melhores, se tornem reais, a poesia está antes do lado da atopia, da heterotopia, da acronia, da heterocronia, em poucas palavras, do real enquanto seu movimento de escape em direção ao que nunca se deixa ser manipulado. A poesia é real exatamente no escape imanipulável que ela faz comparecer em sua realidade; não à toa (e isso não é apenas um jogo de palavras), contrariamente a quase tudo que é vivido no cotidiano, contrariamente a quase tudo que é vivido, a poesia é hiper-real. Sua hiper-realidade lhe permite conter o que contêm o cultural, o contracultural e, mais do que tudo, o selvagem desde onde nascem o cultural, o contracultural e o que deles escapa. Seu lugar é o lugar de todos os lugares e de lugar nenhum, seu tempo é o tempo de todos os tempos e de tempo algum, sua pessoa é a pessoa de todas as pessoas e de pessoa alguma. O lugar da poesia é lugar sem lugar, o tempo da poesia é tempo sem tempo, a pessoa da poesia é pessoa sem pessoa. A poesia nos oferece a possibilidade de nos olharmos desde esse sem pessoa, de olhar nossos lugares desde esse não lugar, de olhar nosso tempo desde esse fora do tempo, de olhar a gente, nossos lugares e tempos como passageiros e precários, ainda que passíveis de alegrias e comemorações ou, passíveis de alegrias e comemorações justamente porque, em exultação, a poesia flagra, neles, a beleza do passageiro e do precário. Como nos mostra Antonio Cicero, a poesia celebra a festa da beleza do passageiro desde a encruzilhada do tempo e dos lugares com o fora do tempo e o fora dos lugares. No que diz respeito à celebração do passageiro, indico aqui a força que o carpe diem da Ode I,II, de Horácio, traduzida, inclusive, por Cicero e postada em seu blog em 18/05/2009, teve sobre muitos de seus poemas, como, só para citar poucos, Segundo a Tradição e o estupendo Buquê.
No gozo de sua “agoralidade” poética, o poeta, então anônimo, está em “lágrimas”, a tarde “banha” sua vida diária, nominal e pessoal que “escorre” em direção ao “mar”. Tudo o que, nele e em torno dele, era sólido se liquefaz no ambiente líquido do mar. Não, entretanto, em um mar qualquer (de Ipanema, Arpoador, Copacabana, Leme, Urca, Botafogo ou Flamengo, por exemplo), mas num “mar sem margens”. Poderia dizer: num mar sem mar, num mar sem o elemento água, num mar sem a substância líquida da água: na imensidão de um mar ilimitado – lar do poeta (“Ah, se eu fosse marinheiro/ seria doce meu lar/ Não só o Rio de Janeiro/ A imensidão e o mar”). Se mar é a palavra poética para que o ilimitado se exponha, tudo o que está no temporal se dilui no ilimitado de um extemporâneo, ele mesmo inesquecível, ele mesmo retornante, ele mesmo reivindicado. Em vez de seu contrário, o extemporâneo é a falta ou o excesso necessários e constitutivos das atualizações do contemporâneo: isso porque o contemporâneo não precisa demandar a presença exclusiva de sua atualidade (já dada), podendo lidar mais livremente com as potências de seu tempo e, consequentemente, de todos os tempos. Tornar o mundano real, reintegrar o atual ao campo do possível, absorver o acabado no inacabado sempre por se fazer, garantir a existência do ilimitado, do informe, é a realização maior do poema e das obras de arte de modo geral, da mesma maneira que o poema e as obras de arte insistem em guardar em suas atualizações as maiores voltagens da extemporaneidade que, com eles, mantêm uma relação de imediaticidade.
Enquanto a filosofia cartesiana parte da experiência de uma dúvida hiperbólica, a poesia nos leva a vivenciar uma exultação hiperbólica. A exclamação tem por objeto a tarde e tudo o que diz respeito a ela e ao seu tempo presente, mas a exclamação, admirativa, está fora do tempo corrente, não podendo, de modo algum, ser objetificada. Se Antonio Cicero, morador da Rua David Campista, no Humaitá, no mesmo prédio em que eu moro, pode ser objetificado, com a exclamação ou a exultação, o poeta perde qualquer possibilidade de objetificação, mostrando-se desde o avesso do que, nele, é pessoal, individual. Não é a pessoa particular quem pensa ou escreve um poema e, pensando-o e o escrevendo, atravessa a experiência poética, mas quem pensa ou escreve um poema é a exclamação, a exultação, o êxtase: quem pensa ou escreve um poema, pensa e escreve de fora de si, de seu tempo e de seu lugar, ainda que veja e lide consigo, com seu tempo e com seu lugar. Extática, exultante, exclamativa, admirativa, espantosa, a existência do poeta se confunde, então, com o fora de si e de todas as outras coisas. Nesse sentido, o Antonio Cicero, meu vizinho, é um sujeito alienado do poema e, como tal, não sendo o poeta, se mostra para este como qualquer outro objeto que o circunda e que se encontra disponível ao poema. O poeta é o impessoal fora do tempo que toma o meu vizinho enquanto mais uma particularidade do mundo arrastando-o, com tudo o que é contingencial, para a experiência poética da imensidão do ilimitado que o habita. Antonio Cicero é uma assinatura que designa um heterônimo do anônimo poético. Nessa cisão que há em quem é poeta, fazendo-o ser bifronte, tendo um lado pessoal e uma dimensão poética, impessoal, extática, exultante, exclamativa, ao longo dos tempos, foi dito que quem poetava era: a Musa, os deuses, a Natureza, Deus, entre outros. Na modernidade, não se deseja colocar nenhum outro ente em seu lugar, mantendo-o enquanto negativo. Na famosa frase, “Je est un autre”, Rimbaud o chamou de outro. Um outro aberto, é claro, e não substantivado. Em seus ensaios, Antonio Cicero chama esse movimento “entre os entes e a essência negativa do ser de apócrise”, mas, aqui, o que me interessa é flagrar um movimento do pensamento de seus poemas.
Preservando a simetria do soneto, que tem sua experiência repentina de quebra do cotidiano e do próprio poema exatamente no sétimo verso, demarcador de seu centro, e mostrando seu jogo de espelhamentos, pode-se ver que o penúltimo verso, desdobrando a origem ilimitada (do “mar sem margens”), repete, também em desdobramento especular, uma palavra presente no segundo verso: fundo. O “fundo” do “mar sem margens” para onde tudo dessa tarde escorre e de onde tudo desta tarde provém confunde-se, assim, com o “fundo azul de uma tela” onde “as letras brancas de alguns versos” espreitam o poeta. Para esse fundo azul do mar sem margens e sem fundo de uma tela, a própria tarde vai; desse fundo azul do mar sem margens e sem fundo de uma tela, a própria tarde veio e “se acendeu feito um fósforo”. Esse fundo azul do mar sem margens e sem fundo de uma tela é trazido do oculto para a superfície por “alguns versos”, que fazem a tarde se acender e se apagar. Esse fundo azul do mar sem margens e sem fundo de uma tela é inteiramente abissal. Seu abismo se confunde com as palavras poéticas. Essa dimensão originária da linguagem (o ilimitado para onde e desde onde, dando a medida do acender e do apagar de todas as coisas, tudo converge) leva o poeta em sua necessidade de renascimento fora de si e de seu tempo a lágrimas de exultação. De um modo mais simples, isso também se coloca em O Emigrante, cujo personagem, ao fim, “Chegou chorando assim como quem nasce/ E o mundo alumbra um segundo e assombra”. Visto desde a origem, tudo que ganha qualquer tipo de individuação é uma “criatura de um só dia, que, bela porque gratuita, És festa/ Serás luto”.
Em um Poema inédito, igualmente revelador do motivo pelo qual em outros versos o poeta se mostra “Herdeiro das superfícies e das profundezas” ou, ainda, como quem aprende que “no fundo de mim/ sou sem fundo”, essa origem oculta, ilimitada e extemporânea, que se diz guardada em cada fonema, em cada sílaba, em cada vocábulo, em cada verso que a manifesta, está escrita da seguinte maneira:
Segredo não é, conquanto oculto;
mas onde oculto, se o manifesta
cada verso, cada vocábulo,
cada sílaba, cada fonema?
E se o trecho opaco como um muro
valerá nossas noites em claro
e não raro justo o mais obscuro
resplandecerá mais que o mais claro?
O poema é o limite que guarda o ilimitado oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma forma que guarda o informe oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é o corpo que guarda o incorporal oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é o determinado que guarda o indeterminado oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é alguma coisa que guarda o nada oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma evidência que guarda o incerto oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um exterior que guarda o infundado oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma clareza que guarda o breu oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é o amarrado que guarda o desamarrado oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é a lembrança que guarda o esquecimento oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma beleza que guarda o mistério oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um aire que guarda a imensidão oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um finito que guarda a infinitude oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um conteúdo que guarda o vão oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma miragem que guarda a verdade oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma identidade que guarda a não-identidade oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma contingência que guarda o absoluto oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma luminosidade que guarda a escuridão oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é o chão que guarda o abismo oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um nome que guarda o anônimo oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma solução que guarda a dissolução oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um amparo que guarda o desamparo oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um dado que guarda o nunca dado oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um acessível que guarda o inacessível oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é a extensão que guarda a intensidade oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um mortal que guarda a imortalidade oculta da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é um ser que guarda o não ser oculto da poesia na resplandecência de sua superfície. O poema é uma ordem que guarda o caos oculto da poesia na resplandecência de sua superfície…
O poema guarda o tempo atualizado e, nele, subitamente, instaura o obscuro do extemporâneo. Essa tensão ou essa conversibilidade (de ver o ilimitado desde o limitado e este desde aquele, o informe desde a forma e esta desde aquele, o incorporal desde o corporal e este desde aquele, o extemporâneo desde o temporal e este desde aquele…) é a contemporaneidade (ou o “agoral”) engendrada pelo poema. Contemporaneidade que comporta ser ao mesmo tempo recôndita e radiante para designar com as palavras, e só com elas, “o caos arreganhado a receber-me incontinente”. Por esse caos, por essa abertura, por esse ilimitado, por esse incorporal, por esse indeterminado… por esse extemporâneo que, no contemporâneo, abarca e transforma o temporal, o poema, que “está na confluência da miragem e da verdade”, ainda preserva em si o espaço possível onde se pode respirar, “pois todas as cidades encolheram,/ são previsíveis, dão claustrofobia/ e até dariam tédio, se não fossem/ os livros infinitos que contêm”… Se não fossem “os livros infinitos” e, sobretudo, se não fosse o infinito de cada livro, se não fosse o infinito que cada poema traz consigo, nos oferecendo um balão de oxigênio para que possamos – ainda – respirar da melhor e mais livre maneira. Não à toa, a epígrafe do livro A Cidade e Os Livros é um poema de Rose Ausländer, que diz:
Ainda há espaço
para um poema
Ainda é o poema
um espaço
Onde se pode respirar.
Alberto Pucheu