38º Episódio – Folhetim (II sequência de novelas) – O MÊNSTRUO MÁGICO DAS ORQUÍDEAS GRÁVIDAS – Folhetim em Setenta Episódios por Carlos Pessoa Rosa

Nada disso Amélia, nunca estive tão singular, tão igual, tão normal… Não se preocupe. Isso é verdade, se o senhor fizer a barba e pentear o cabelo, ninguém vai desconfiar de onde veio, o senhor sabe, lá do hospital. Hospital não, Amélia, hospício. Não fale assim que agora o senhor está normal, ouvi bem o que disse do seu André, e tem razão. Fico imaginando o que diz de mim por aí… Nada não, eles é que dizem do senhor, acham esquisito o modo de vida que leva, mas aqui entre nós, cada um tem lá sua loucura, veja o seu André, vive lavando as mãos, sem motivo algum, Dona Heloisa carcome a unha como o rato faz com a madeira, as três irmãs da esquina, solteironas, vivem paparicando o padre, limpando as santas e adorando os anjos na paróquia, deram de vesti-los com roupas de renda que elas mesmas fazem, onde já se viu esconder o sexo dos anjos, que Deus me perdoe, ficam parecendo travestis, mas não vêm ao caso, elas gastam o rosário de tanto rezar, e que fique aqui entre nós, são virgens só na frente, o traseiro é ninho de cobra, conheço bem esse tipo de gente, e veja o seu Jacob do armazém, não dorme enquanto não conta e guarda as moedinhas conseguidas no dia, sempre levando uns juros dos mais pobres nos atrasos da conta… E a Amélia, qual a loucura da Amélia? Não pensei nisso, não senhor! Devo ter alguma… Respondeu e saiu rapidinho na direção do banheiro. Efeito dos remédios aguentar estas conversas inúteis, fosse outro o momento, não a teria deixado entrar… Melhor resolver os problemas comuns.

A carteira sobre o móvel. Levo minha mão até ela, olhar oblíquo nos livros nas prateleiras, nas cartas sobre o móvel. Não é possível escrever sendo apenas um, é preciso ser duplo, pelo menos ter um sósia, um olhar estrangeiro, não sinto necessidade de dizer o comum, melhor o outro a falar do mundo e de nós, diferentes modos de enxergar e pensar, mas os malditos remédios deixam-me só, sem o outro de mim e meus fantasmas, suturaram a fenda onde habitam, mas logo os libertarei… Voltar à velha máquina de escrever, vício e vida, a literatura é um jogo. Melhor sair, pagar as contas e solicitar que religuem luz e água. Amélia?! Estou saindo, retorno assim que resolver os problemas. Digo alto. Não se preocupe, quando voltar não vai reconhecer a casa, o senhor vai ver, responde do banheiro a empregada, a voz misturada ao som da vassoura esfregando o chão. Às vezes tenho a sensação de nunca nesta casa… São os malditos fármacos, com o sentido dúbio da palavra, que nada resolvem sem antes remexer em outras estranhezas. Já perdi muito tempo, quanto mais cedo resolver, melhor. Na porta, as pernas moles… Saio, apesar do suor e das mãos frias. Estou fora… É o que pensam. O fora é um dentro sem portas e janelas. Dentro nunca será o avesso do fora. Melhor fechar a porta, não é seguro deixá-la aberta. Maldita mangueira! Não vou conseguir… Também, não há o que roubar, que ladrão cometeria algum delito em um curral de porcos? Fique sossegado, eu olho para você. Assustaria a voz surgida do nada e a mão sobre meu ombro direito, não reconhecesse de André. Rosto de um bicho-preguiça querendo ver em mim algum sinal de que a doença ainda.

 (continua)